Alguns conteúdos formam uma combinação propensa a viciar
e causar danos
A prática de cyberbullying agora é crime previsto no Código Penal. Sancionada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e publicada no Diário Oficial da União nesta segunda-feira (15), a Lei 14.811, de 12 de janeiro de 2024, institui a Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente e altera a Lei dos Crimes Hediondos e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Quem promover constrangimento ilegal de forma sistemática nas redes sociais, aplicativos, jogos online ou em qualquer área no ecossistema digital, será punido com multa e reclusão de dois a quatro anos. O bullying também passou a ser uma violação tipificada no Código Penal, mas prevê apenas multa.
Agora, as infrações previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) são consideradas crimes hediondos, quando o acusado não pode receber anistia, graça, indulto ou fiança.
Utilizar a internet para instigar ou induzir ao suicídio ou à automutilação é uma das práticas transformadas em crime hediondo. Não é necessário que a vítima seja menor de idade. A pena atual, de dois a seis anos de reclusão, pode ser duplicada se o autor for responsável por grupo, comunidade ou rede virtual.
Resultado do projeto de lei (PL 4.224/2021) apresentado pelo deputado Osmar Terra (MDB-RS) e relatado no Senado em dezembro pelo senador dr. Hiran (PP-RR), as mudanças chegam no momento em que o debate sobre os limites dos algoritmos que sustentam as redes sociais fica cada vez mais acirrado.
As redes sociais estão presentes na vida das pessoas há 20 anos. Em janeiro de 2004, o engenheiro turco Orkut Buyukkokten lançou o Orkut, adquirido posteriormente pelo Google e desativado em 2014. Um mês depois, veio o Facebook, que dominou o território hoje habitado também por Instagram, WhatsApp, TikTok, X (ex-Twitter), Threads, LinkedIn e Pinterest, entre outros.
A popularização da internet para engajamento social foi avassaladora. E não parou só na busca por amigos. Opiniões, queixas e manifestações de toda natureza ganharam vozes antes caladas pelo sistema unilateral de comunicação das empresas e órgãos públicos.
Logo, a exposição do estilo de vida se transformou em um dos temas preferidos de postagens ávidas por interações. Viagens, restaurantes, compras, declarações de amor, sucesso no trabalho, o corpo perfeito. As telas materializaram aspirações cada vez mais utilizadas para ostentar um mundo de mentira, aliás, profetizado em ‘O show de Truman - o show da vida’.
O filme de 1998 descreve a rotina de Truman Burbank, interpretado por Jim Carrey, que experimenta uma vida artificial, orquestrada por produtores de televisão para milhões de pessoas. Foi também o prenúncio da vigilância dos reality shows.
Hoje, os algoritmos operam em favor de polêmicas que geram audiência e ajudam a sustentar o modelo de negócio das plataformas. “As redes sociais são projetadas para maximizar a interação e o tempo de permanência, e podem levar ao estímulo de comportamentos associados a conteúdos polêmicos e sensacionalistas”, analisa André Miceli, professor de MBAs da FGV.
A felicidade ostentada a cada post virou uma armadilha, hoje confirmada pelos próprios usuários. Um grupo de mais de 30 estados norte-americanos processou a Meta por considerar que as suas plataformas, Instagram e Facebook, utilizam recursos para atrair e viciar jovens e crianças, lucrando com a disseminação de conteúdo nocivo.
Aliados a determinadas técnicas, alguns conteúdos formam uma combinação propensa a viciar e causar danos. “Não há dúvidas de que há produtos online que viciam, tais como as redes sociais. Existem obras técnicas que explicam isso, existem técnicas de neurociência para viciar as pessoas em rolar para cima o conteúdo e ficar horas a fio em frente a uma tela”, ratifica Marcelo Crespo, coordenador e professor dos cursos de graduação e pós-graduação em direito da ESPM.
De acordo com o estudioso, o problema extrapola a tecnologia e a existência das redes sociais. O momento exige responsabilidade no cuidado com a segurança e saúde mental das pessoas. “Não é possível falar de forma extremamente objetiva sobre os limites de algoritmos, mas é possível delinear conteúdos que devem ter maior limitação na divulgação”, explica Crespo. As restrições já impostas à publicidade da indústria tabagista e de bebidas alcoólicas podem guiar a transição para um ambiente online seguro.
Na opinião de Miceli, a acusação associada ao vício é plausível dado o poder de influência dos algoritmos em interferir no comportamento, inferir e manipular pessoas. “O modelo de negócio é feito dessa forma. A sociedade, e não a tecnologia, é que vai estabelecer os limites éticos, morais e regulatórios, que inevitavelmente vão aparecer para os algoritmos, garantindo que eles promovam ou, pelo menos, aumentem as chances de promover conteúdos que não prejudiquem grupos vulneráveis”, avalia Miceli.
O professor Luís Guedes, da FIA Business School, mostra mais evidências. “Os engenheiros e outros profissionais que idealizam e treinam os algoritmos de redes sociais utilizam técnicas avançadas e orientadas a dados para aumentar o engajamento do usuário, muitas vezes, priorizando conteúdos que provocam reações emocionais fortes, como discursos de ódio ou polêmicas”, reforça. Notificações, conteúdo infinito e formatado para cada usuário e recompensas intermitentes são alguns dos artifícios comumente implementados para aprisionar a atenção dos usuários.
Consequências extremas
Não à toa, os assuntos que mais engajam estão frequentemente ligados a discursos de ódio, difamações, violências e fofocas. Uma das mentiras levou à morte de Jéssica Vitória Canedo, de 22 anos, na cidade de Araguari (MG), no dia 22 de dezembro de 2023.
Conversas inverídicas da estudante sobre um suposto relacionamento com o humorista Whindersson Nunes foram publicadas por redes de fofocas. Mesmo desmentida por ambos os lados, a fake news foi mantida no ar, provocando uma avalanche de mensagens ofensivas direcionadas a Jéssica, que já lutava contra um quadro de depressão.
“Isso aconteceu porque as pessoas atacam as outras pessoas também. Existe uma grande parcela de culpa de todo mundo. A gente não quer mais vítimas. Errado é o topo da pirâmide, que lucra com isso”, comenta Whindersson Nunes em vídeo no Instagram. O influenciador se comprometeu a acompanhar as investigações e iniciar um movimento para criar a Lei Jéssica Vitória. A intenção é aprimorar as normas brasileiras e neutralizar o “jornalismo não oficial, que é muito perigoso”, avisa Whindersson.
Estopins da notícia falsa, Garoto do Blog e Choquei – esse último com mais de 20 milhões de seguidores no Instagram – são alguns dos investigados pela Polícia Civil de Minas Gerais, que cogita a possibilidade de enquadrar os envolvidos no crime de indução ao suicídio. “A Choquei passa por um profundo processo de reavaliação interna dos métodos adotados visando a implementação de filtros e códigos de conduta para evitar que episódios dessa natureza voltem a acontecer”, escreveu o perfil em nota.
Ambas as páginas integraram um projeto da Mynd chamado Banca Digital, que reúne cerca de 30 perfis de fofoca e humor no Instagram. O perfil ‘Choquei’ não faz mais parte do casting da Mynd. Já o Garoto do Blog “está afastado de nossas atividades comerciais até a conclusão do caso. A Mynd, como agência de marketing de influência, cuida exclusivamente da intermediação de venda de publicidade em perfis nas redes sociais. A Mynd não participa em nenhum momento da definição do conteúdo editorial de nenhum perfil”, defende-se a empresa, após vídeos e documentários especularem sobre a manipulação de conteúdo nas páginas por ela agenciadas.
“Os perfis são independentes e administrados por seus donos, que definem todo e qualquer conteúdo”, reitera a agência liderada pelos sócios Fátima Pissarra, Preta Gil, Carlos Scappini e Marcus Buaiz. A Mynd atua na gestão de imagem, parcerias com marcas e desenvolvimento de estratégias individuais de mais de 400 nomes.
Por meio de um comitê de integridade, criado há três anos, a empresa alega atuar “contra divulgação de fake news e incitação ao ódio, assim como os linchamentos virtuais. Lamentamos profundamente o caso ocorrido com Jéssica Canedo e prestamos toda solidariedade à família”, declara a Mynd, que ainda diz empenhar esforços para que o setor de marketing de influência e notícias “seja regulamentado o mais breve possível, com regras rígidas para que se evite qualquer situação desse tipo ou em qualquer outro formato que não siga a liberdade de expressão, respeito e verdade”.
Parlamentares protocolaram requerimento para instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e denúncia no Supremo Tribunal Federal (STF), Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Procuradoria-Geral da República (PGR) a fim de apurar o trabalho desenvolvido para os influenciadores representados pela Mynd.
Reparações
A ansiedade acentuada pela contagem de curtidas e a frustração com a realidade são apenas algumas facetas do meio digital, que também decretou o fim de negócios em diversos segmentos. Outros entraram em uma crise que perdura até hoje. A mídia é um exemplo. Mas algumas reparações começam a ser feitas. O Google se comprometeu a pagar R$ 362 milhões ao ano para a indústria de comunicação e plataformas de mídia canadenses pelo uso de conteúdo.
“A essência do Google é criar produtos para ajudar pessoas e empresas a alcançarem um objetivo maior. É isso que fazemos todos os dias no mundo inteiro e no Brasil desde a nossa chegada, em 2005. Os brasileiros estão entre os principais consumidores dos nossos produtos e plataformas, com mais de um bilhão de usuários”, informa o Google.
A empresa de tecnologia lembra que, do outro lado, estão empresas brasileiras dos mais diversos portes, que utilizam as suas plataformas de anúncios para alcançar a audiência e vender produtos e serviços, ativando a economia. “Os nossos serviços ajudaram a movimentar R$ 153 bilhões no Brasil em 2022, conforme o último ‘Relatório de impacto econômico’, divulgado em junho do ano passado”, responde a empresa.
A publicidade digital somou investimentos de R$ 16,4 bilhões no primeiro semestre do ano passado, alta de 11%, segundo o estudo ‘Digital AdSpend’, do Interactive Advertising Bureau (IAB Brasil) e Kantar Ibope Media.
“O acordo com o Canadá pode ser visto como um reconhecimento, por parte da Alphabet, dona do Google, sobre a importância e o valor do conteúdo gerado pela indústria de comunicação, refletindo o esforço para se criar um ecossistema digital global mais equilibrado, onde as big techs contribuem para a sustentabilidade de setores naturalmente afetados pela sua operação”, observa Miceli, da FGV.
O esforço para equilibrar os interesses e o impacto das big techs na distribuição de conteúdo de mídia e na publicidade online é citado também por Crespo, da ESPM. O cenário “reflete a complexidade e as divergências de opiniões dentro do setor tecnológico sobre como lidar com essas questões, já que é difícil assegurar os valores perdidos pelas empresas de comunicação em razão da distribuição do conteúdo digital”, atesta.
De qualquer forma, a medida apoia a oferta de valor da indústria de comunicação, ancorando a produção jornalística de qualidade em detrimento de conteúdos engendrados apenas para ganhar engajamento. “Os governos estão cada vez mais propensos a regulamentar as big techs para equilibrar o poder das plataformas digitais com os interesses da sociedade. Este acordo pode ser um modelo para outros países”, comenta Guedes, da FIA Business School.
Mas o acadêmico faz uma ressalva. “Esse tipo de comportamento do Estado abre uma possibilidade perigosa de risco de controle governamental sobre a mídia. Mesmo que a intenção inicial seja positiva – desconfio que não existe intenção positiva nessa arena, mas é possível que haja – não se sabe quais os contornos esse controle pode ter no futuro”, sinaliza. O especialista destaca ainda que o acordo não é claro sobre a destinação e a forma de repartição do dinheiro decorrente da multa.
Concorrentes do Google divergem da iniciativa, mas o debate fica cada vez mais acirrado. Nos Estados Unidos, o The New York Times processou a Microsoft, dona do Bing, e a OpenAI, proprietária do ChatGPT, pela utilização de artigos e conteúdos sem a permissão do jornal para treinar modelos de inteligência artificial. Segundo a publicação norte-americana, o descumprimento de regras de direitos autorais estaria incitando a competição com o próprio conteúdo do NYT, comprometendo os investimentos feitos na atividade jornalística e encolhendo fontes de receita.
Leia a íntegra da reportagem na edição impressa do dia 22 de janeiro