Em meados dos anos 1970, um anúncio sequencial de páginas duplas, criado pela DPZ para a Perfumaria Rastro, mostrava, pela ordem, dois homens abraçados, duas mulheres abraçadas e um filho com a cara enfiada entre os peitos da mãe. O título se repetia: Para contatos de primeiro, segundo, terceiro e qualquer grau. Rastro. Além de saudar relações homossexuais, ainda se atrevia a escancarar uma atitude edipiana explícita. Tudo isso em plena ditadura. Um escândalo.
Tamanha ousadia só foi possível porque DPZ e Rastro eram empresas à frente do seu tempo. Passados quase 50 anos, o que era exceção virou lugar-comum. Por mais que se tente, hoje em dia, atribuir coragem ao posicionamento politicamente correto das marcas, o fato é que isso já não impacta. Na melhor das hipóteses, estabelece um alinhamento com o senso comum. Na pior, pode ser visto como oportunismo. É de se perguntar, portanto, o que seria ousadia atualmente? Não vale sugerir atitudes de rebeldia irresponsável, como também foi moda nos anos 1980 e, felizmente, caiu em desuso.
Ousadia, aqui, significa desafiar culturas impostas que já não fazem sentido. E muitas vezes são disseminadas através da própria publicidade. Quer um exemplo? Um vídeo da Coca-Cola que recebi pelo WhatsApp. Nele, crianças pobres, aparentemente do interior nordestino, revelam ou que não conhecem Papai Noel ou que sabem muito pouco sobre ele. No melhor momento do comercial, se dá o seguinte diálogo impagável entre uma criança e o entrevistador oculto:
– Ele mora na Betânia?
– Quem?
– O coiso…
O coiso, no caso, é o Papai Noel, tão distante do seu imaginário que ela sequer gravou o nome. Enfim, essa peça me foi enviada como a oitava maravilha do poder de emocionar do marketing. Até poderia ser se terminasse na fala memorável da menina. Mas não. Ele prossegue para um patético “final feliz” que vem a ser, numa noite, a chegada triunfal do caminhão da Coca-Cola naquele fim de mundo árido. Abre-se uma espécie de palco na carroceria de onde surge um sujeito de barba branca, gorro e um casaco pesado vermelho.
Corta para o olhar aparvalhado (há quem entenda como encantado) das crianças, diante de imagem tão inédita como a aterrissagem de um UFO e o surgimento de um ET. A insanidade, no entanto, não termina por aí. Pasmem: começa a “nevar”, ao som de canções natalinas! Naturalmente, a propaganda acaba sem mostrar o caminhão e seu personagem indo embora e a escuridão caindo outra vez sobre o lugar. Acho que seria uma saudável ousadia esse vídeo ser contestado por alguma marca concorrente (Dollynho não, por favor).
Aliás, não precisa nem ser de refrigerante, basta que seja de um empreendimento disposto a questionar certo colonialismo cultural que remete aos anos 1940. Fantasia é compatível com a infância, concordo. Mas eu gostaria mesmo era de saber se esse ser “fantástico” proporcionou algo mais do que sua “aparição” debaixo de “neve” àquelas crianças. Se o poder da sua “magia” foi capaz de mudar alguma coisa na vida delas ou se tudo ficou restrito a um cachezinho.
Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing (stalimircom@gmail.com)