Novembro. Mais de 900 salas de cinema no Brasil exibem “Harry Potter e a Pedra Filosofal” para um público de 325 mil espectadores. Não estamos falando de 2001, mas de 2021, precisamente o último domingo (21).
A exibição do longa em uma versão 3D marcou os 20 anos de sua estreia nas telonas e arrecadou R$6,7 milhões em bilheteria. Isso em apenas um dia.
A programação faz parte da celebração idealizada pela Warner Bros. Pictures. Participaram redes como Cinemark, Cinépolis, Cinesystem, PlayArte e UCI, que tiveram sessões lotadas por adultos que cresceram com a saga.
A adaptação das páginas da autora J.K. Rowling chegou ao cinema brasileiro em 23 de novembro de 2001. À época, o longa alcançou US$ 975 milhões no mundo. E era só o começo do fenômeno nas telas. Desde então, o universo criado em torno do “menino que sobreviveu” alcançou absolutamente todas plataformas que surgiram, e inspirou todo tipo de produto e de experiência que o marketing foi capaz de divulgar.
Dos livros às rotinas de consumidores, a saga também se materializou em roupas, itens domésticos, enxovais para todas as ocasiões, decoração, festas, calçados, jóias, penteados, fantasias, móveis, músicas (de funk a uma versão de Faroeste Caboclo), eventos, bebidas, parques e tantas coisas que faltaria espaço para citar.
Pedro Curi, coordenador do curso de Cinema e Audiovisual na ESPM, afirma que a saga concentra várias questões que a tornam um sucesso. “Além de ter uma história que remete a uma série de mitologias, que traz valores universais e servem a todas as idades, tem um universo extremamente complexo e que existe paralelamente ao nosso. Isso fez com que as pessoas criassem um interesse muito grande por esse mundo mágico e tivessem o desejo de um dia descobrir algo que as tornem especiais”, explica.
Além disso, ele destaca a forte identificação do público, que passou a se olhar por elementos da narrativa. “Hogwarts é dividida por casas, que são divididas por características pessoais, e isso fez com que as pessoas criassem um senso de identidade. Outro ponto é que os fãs começaram a criar histórias dentro de Hogwarts, fanfics e conteúdos que chamaram atenção também da J.K. Rowling. Ela foi nessa direção percebendo o potencial e fez a transformação de Harry Potter para o Wizarding World, que é hoje o grande universo narrativo”, conta.
Nesse sentido há o parque como espaço de imersão e experiência, além de todos os produtos relacionados. “Então a temos a qualidade da experiência, a identificação e também a um consumo ligado a partir de todos esses conteúdos”, completa.
Por tudo isso, a reexibição do filme levou milhares de pessoa ao escurinho. E justamente num momento crucial da indústria do cinema, uma das mais afetadas pela pandemia. Pela bilheteria e a repercussão do projeto nas redes sociais, foi um bom feitiço para o segmento.
Juliano Russo, diretor comercial e de marketing da Cinépolis Brasil, conta que a rede abriu apenas uma sessão às 19h. Mas a alta demanda logo transformou isso em quatro a cinco sessões nos 42 complexos. Para ele, além de trazer famílias e jovens de volta aos cinemas pela primeira vez desde que foram fechados, a reexibição impactou diretamente as bilheterias nacionais. “Nossa avaliação, nesse momento, é positiva e queremos que os cinemas voltem a estar entre as opções preferidas de lazer e entretenimento do público. A volta de eventos como um todo, das torcidas em estádios de futebol, dos shows presenciais e dos teatros, e principalmente, dos grandes lançamentos nos deixam muito animados para 2022”, celebra.
O executivo também acredita que a dimensão dessa iniciativa segue a trilha de sucesso dos filmes anteriores, que sempre tiveram resultados positivos na Cinépolis. “Temos uma base de fãs enorme no Brasil. Tivemos pré-estréias com sessões à 0h01 com filas gigantescas, fãs fantasiados de personagens, na expectativa de serem os primeiros a verem o filme”, lembra.
A Cinesystem também viu que a população de bruxos era bem maior que o inicialmente esperado, e saltou de 30 para 135 sessões. Sherlon Adley, diretor Comercial e de Marketing da Cinesystem, avalia parte do impacto que a ação gerou no setor e na rede. “É a consolidação de um movimento de retomada do público ao cinema que já ocorreu no Venon, no Eternos e que vai se manter no Homem-Aranha e em Matrix até o fim do ano. Isso nos sinaliza que 2022 tende a ter o ritmo de crescimento e retorno do público visto nestes últimos dois meses”, indica.
Na UCI não foi diferente, a rede disponibilizou a exibição inicialmente em 20 salas e 33 sessões, mas chegou a 37 salas e 131 sessões em seus complexos. Na esteira, a rede comemorou também as duas décadas de “Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel”, com uma ação na segunda (22), em versão estendida e remasterizada. Foram dias realmente mágicos para o cinema no Brasil.
Elenco reunido no streaming
Das telonas para telinhas que cabem na mão, outra ação comemorativa que promete mexer tanto ou ainda mais com o público está marcada para o dia 1º de janeiro de 2022. A HBO Max vai exibir o “Harry Potter – 20 anos de magia: De volta a Hogwarts”, um especial de 90 minutos e que reúne o elenco em Leavesden, onde tudo começou.
A iniciativa foi produzida pela Warner Bros. Unscripted Television em associação com a Warner Horizon na Warner Bros. Studio Tour London. O especial tem produção executiva de Casey Patterson da Casey Patterson Entertainment (“A West Wing Special to Benefit When We All Vote”).
Ao PROPMARK, Tomás Yankelevich, Chief Content Officer de General Entertainment da WarnerMedia Latin America, contou que a ideia de reunir o elenco novamente e presentear os fãs com uma grande celebração não vem de hoje. “Somos uma plataforma de streaming para todos e sabemos que o legado de Harry Potter é muito importante para os que sempre viveram e acompanharam essa história. Enxergamos na comemoração de 20 anos do primeiro filme um grande marco para esta oportunidade. Vimos como o público vibrou com reencontros como ‘Friends: The Reunion’ e ‘Fresh Prince of Bel Air Reunion’ e, desta vez, estamos ainda mais empolgados em proporcionar este momento inédito e inesquecível”, diz.
O executivo pontua que hoje o fandom se manifesta como uma das maiores forças culturais: amam intensamente, acompanham as novidades, desejam produtos licenciados e são fiéis. “Harry Potter é um fenômeno cultural e o público tem uma forte ligação com tudo o que é nostálgico, o que torna a franquia ainda mais significativa para cada um. Se aventurar nesse universo significa participar da mesma paixão e deixar que conversas fluam e se conectem com a marca. É muito gratificante fazer parte disso e atender ao público em diferentes formatos, como o cinema, o streaming, os produtos licenciados e todos os canais de comunicação disponíveis”, explica.
Mas o que explica tamanho fenômeno comercial?
Além da riqueza de camadas dentro da narrativa, uma das principais razões é a forte ligação afetiva com a audiência. No lançamento do primeiro longa, os protagonistas Daniel Radcliffe (Harry Potter), Emma Watson (Hermione Granger) e Rupert Grint (Ron Weasley) tinham 12, 11 e 13 anos, respectivamente, assim como boa parte dos fãs.
Segundo Curi, esse laço formado pelas idades do público e dos personagens também aconteceu antes, pelos livros. “Muitas crianças começaram a ler Harry Potter com a mesma idade dos personagens e cresceram com eles. Isso também aconteceu no come com os atores e os lançamentos anuais, criando um vínculo afetivo de alguém que amadurece junto”, indica.
Foram dez anos crescendo juntos diante dessa audiência fiel que acompanhou os oito filmes, considerando as duas partes do sétimo título da franquia. O capítulo final estreou em julho de 2011, mas parece que foi ontem, tamanha lembrança que se renova em merchandising e nas outras pontas de contato com o público. A despedida, de certa forma, parece que não aconteceu.
Vale dizer também que a paixão pela franquia é tão avassaladora, que mesmo na era da cultura do cancelamento, em que muitas vezes as pessoas não separam autor de obra, público e privado, os fãs blindam o conteúdo de qualquer problema. Entre os exemplos estão as polêmicas com a escritora britânica, que foi criticada e desagradou muitos seguidores por opiniões controversas sobre pessoas trans.
Outro pilar desse sucesso é a presença constante em diversas telas. Arriscaria dizer que Harry Potter nunca ficou fora da TV, sendo conteúdo em alguma janela de exibição, no linear ou no streaming. O público acostumou tanto a esbarrar com a trama em sua jornada de consumo de mídia, que não é raro encontrar pessoas reclamando de sua ausência, por menor que seja.
Um dos casos mais ‘conhecidos’ é o da Netflix, que recebia (e possivelmente ainda recebe) pedidos para ter o bruxinho no catálogo. O causo ‘Netflix x Harry Potter’ virou brincadeira até na própria empresa que por diversas vezes falou dessa pressão do público, como em 2020 que indicou conteúdos disponíveis em streamings concorrentes ou em 2019 quando pediu para o Instagram aproveitar a ocultação de likes e tirar também os comentários sobre o bruxo.
Outra peça-chave está no licenciamento. Em 2010 e às vésperas da estreia da primeira parte do último filme, Marcos Mello, então gerente geral da divisão de licenciamento da Warner, comentou que o faturamento esperado era 20% superior ao anterior. “A cada filme sempre foi uma crescente. O ‘Enigma do Príncipe’ arrecadou 50% mais que ‘A Ordem da Fênix’. O último filme terá cerca de 60 produtos licenciados com a marca. Estamos muito otimistas com os resultados”, declarou. Até ali, os seis primeiros filmes arrecadaram algo estimado em US$ 5,4 bilhões no mundo.
Se apenas o último filme teve 60 produtos licenciados, é possível ter um ideia da quantidade de opções criadas para consumir nessas duas décadas. Mas não é apenas o volume de itens que chama atenção: cada lançamento carrega detalhes importantes para os Potterheads – como são chamados os apaixonados pela saga – e que são cuidadosamente pensados para atingir o coração de um consumidor exigente e disposto a gastar.
De símbolos como os brasões das casas de Hogwarts ou o Pomo de Ouro, a diálogos marcantes e elementos internos da trama, o cuidado das empresas envolvidas ao desenvolver os itens faz com que eles sejam – na visão dos fãs – muito mais que apenas objetos enfeitados.
Mello, hoje gerente geral no Brasil da Warner Bros. Consumer Products, afirma que a franquia só cresce e oferece oportunidades ao mercado do entretenimento e cultura pop. “Além de experiências oficiais, o recente lançamento de brinquedos da Spin Master, um importante parceiro global da Warner Bros., chegou ao Brasil por meio da importadora Sunny Brinquedos, um movimento estratégico entre grandes marcas que contribuem para a atemporalidade da franquia. Outra novidade que reforça a sua importância é o lançamento da FreeFaro, que apresenta uma coleção de produtos para cães e gatos inspirada em ícones, cores e símbolos da franquia, o primeiro projeto de licenciamento no setor pet, no Brasil. Demais parceiros oficiais como Imaginarium, Renner, Riachuelo, Piticas, entre outros, continuam a ter os produtos desse universo em suas respectivas linhas com sucesso”, sinaliza.
A Imaginarium que o diga. Parceira da Warner Bros. desde 2017, a empresa tem em Harry Potter o seu maior licenciamento. Nesses quatro anos foram lançados 117 produtos. No maior evento de Licenciamento do Brasil desse ano, o Licensing Day, que reúne varejistas, indústrias e licenciadores como Disney, Warner e Mattel, a Imaginarium ganhou o Melhor Produto Licenciado por meio da almofada sonora no formato do chapéu seletor.
Audrei Variani, diretora de Produto da Imaginarium, fala da sinergia entre a empresa e do mundo bruxo criado pela J.K. “Boa parte do nosso time cresceu lendo os livros de Harry Potter, acompanhou o lançamento das obras ano após ano, e isso foi muito marcante para essa geração. Sabemos que não somos os únicos e que existe uma legião de fãs que compartilham do mesmo sentimento pelo universo mágico que a saga criou, e logo vimos uma oportunidade de fazer parte disso, com toda nossa força de criação de produto”, explica.
Claro que esse marco das duas décadas não passaria batido. Os lançamentos novamente mergulham no contúdo da franquia e incluem uma iconografia da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts e suas Casas (Grinfinória, Sonserina, Lufa-Lufa e Corvinal), a Plataforma 9 ¾, o Expresso de Hogwarts, jogo de Quadribol e as varinhas, por exemplo.
A Renner está com uma coleção de roupas, acessórios, calçados, decoração e vestuário infantil, com preços que variam entre R$15,90 a R$219,90. Já a Riachuelo destaca itens como colchas, pratos, almofadas, camisetas, moletons e meias, com valores de R$13,90 a R$249,90.
A Chilli Beans preparou uma linha de relógios, armações de grau e óculos de sol inspirados em efeitos visuais de feitiços, frases icônicas e referências que todo fã da saga reconhece imediatamente. Ao todo, são sete óculos de grau, 33 de sol e 10 relógios, com preços a partir de R$ 259,98. A Le Creuset, marca francesa de utensílios de cozinha, criou uma coleção com nove peças em ferro fundido, cerâmica, aço carbono e utensílios de silicone, com preço inicial de R$ 299.
Em mais uma demonstração do poder de consumo do Mercado Pet, a FreeFaro também se uniu a Warner Bros. nessa celebração e criou guias, coleiras, camas, bandanas, tags e bolsas inspiradas na franquia. Os itens da coleção têm preço variando entre R$ 24,90 a R$ 399,99.
Um dos exemplos mais simples está nos livros. Quando o primeiro produto estava sendo licenciado no Brasil, lá em 2001, já haviam sido vendidos 67 milhões de exemplares dos quatro primeiros volumes no mundo e a obra já havia alcançado 40 idiomas. Desde então, foram feitas muitas versões especiais, comemorativas, limitadas e de colecionadores, mas que essencialmente contém o mesmo conteúdo interno. Ainda assim, os livros seguem bem vendidos e procurados por toda uma geração de novos leitores.
Na avaliação de Yankelevich, a franquia é uma obra atemporal e supera o desafio de alcançar novos públicos a partir justamente das diferentes possibilidades em relação ao consumo de entretenimento. “As novas gerações acabam sendo impactadas pela saga, seja por meio de algum parente, um amigo, pelas redes sociais ou até mesmo no momento da escolha do que assistir na plataforma de streaming. A produção conversa com todos os públicos e faz com que a legião de fãs transcenda gerações”, diz. Com a celebração de 20 anos do primeiro filme, a HBO Max deve apresentar mais novidades para os fãs de todas as idades.
Diante de tudo isso, é possível trabalhar na indústria da comunicação e não conhecer a proporção que Harry Potter tomou além dos livros? No mundo criado pela autora, pessoas sem poderes mágicos ou que não sabem da existência dos bruxos, são chamadas de trouxas. E num mundo em que há quem ache bonito desconhecer fenômenos “populares”, como é o caso dessa franquia? Como essas pessoas seriam chamadas?