As eleições prometem assombrar as marcas até 2022. Mas esse não é o único assunto que coloca os anunciantes na berlinda. Inclusão, diversidade e gênero. No encalço dessas bandeiras está o ativismo de marca. O fenômeno é resultado de dois movimentos que se chocaram. De um lado, veio a evolução do comportamento nas redes sociais, transformadas em instrumento de expressão e polarização política. Do outro, chegaram marcas ávidas por abraçar causas. Isso aconteceu a partir da metade da década de 1990. O embate ficou claro nas manifestações de junho de 2013, quando ocorreu a quebra de consenso na sociedade brasileira.
Não há como fugir. Marcas são ressignificadas e coconstruídas pelos consumidores. E, sobretudo hoje, devem evitar o que nos Estados Unidos ficou conhecido como wokewashing. Já teve a época do greenwashing, onde empresas pregaram a sustentabilidade, mas foram criticadas por continuarem usando copos descartáveis. A Starbucks é um exemplo. E, com a ascensão da diversidade, surgiu o pinkwashing.
Agora, é a vez de o wokewashing insinuar suposta conscientização. “É como se fosse um despertar, só que falso”, explica José Mauro Nunes, da FGV Ebape. Dois casos elucidam a questão. Um é da Nike. O jogador de futebol americano Colin Kaepernick se ajoelhou durante o hino nacional norte-americano em um jogo de 2016 para protestar contra a violência policial direcionada aos negros, e chegou a se tornar símbolo da campanha Black Lives Matter no ano passado. Até hoje sem contrato com as franquias da NFL – a liga de futebol americano -, o quarterback ganhou o apoio da Nike, mas a marca continuou patrocinando times que baniram o atleta.
Já a Gillette, da P&G, escolheu a masculinidade tóxica como mote. Aproveitando os movimentos do Me Too, a marca quis chamar a atenção para o papel do homem na nova sociedade. “O problema é que ela não promovia lideranças femininas. Há uma disfunção. Fala-se uma coisa, mas se pratica outra. Isso é um tremendo perigo”, frisa Nunes.
Caminho sem volta
O ativismo pode ser progressista ou regressivo. E pode ser tanto de esquerda como de direita. A marca norte-americana de cafés Black Rifle Coffee Company escancara os extremos. Fundada por veteranos de guerra norte-americanos, empenha um posicionamento patriota, ganhando popularidade no governo de Donald Trump. No Brasil, encontra paralelo com a marca bolsonarista Havan, de Luciano Hang.
Em 6 de janeiro, dia da invasão ao Capitólio nos Estados Unidos, a Black Rifle Coffee Company distribuiu kits com camisetas para quem comprava cafés. Estrago feito. Várias pessoas foram vistas no ato contra o Congresso norte-americano vestindo a blusa da marca. Até hoje a empresa tenta se reposicionar. “O exemplo é de um ativismo regressista, conservador”, diz Nunes.
Por aqui, a rede de restaurantes Madero apanhou ao manifestar apoio ao governo do presidente Jair Bolsonaro, mas se fechou para evitar a polêmica, conter a crise e tentar seguir com o seu plano de expansão. “O jogo é menos arriscado quando a empresa tem posicionamento claro”, comenta Nunes, lembrando o caso da marca de roupas californiana Patagonia, que já nasceu defendendo o meio ambiente. A companhia processou Trump e conseguiu junto à Suprema Corte Americana barrar a diminuição de reservas nacionais. “Pratique aquilo que você é de verdade. Essa é a vacina contra a partidarização”, recomenda Fábio Santos, CEO do grupo de relações públicas CDN.
Dos clamores da sociedade em prol de uma atuação sustentável do ponto de vista social e ambiental vieram transformações que culminam hoje na compra orientada pela responsabilidade das marcas. O contexto baliza o risco em nome da sobrevivência. “As empresas vêm encontrando razões socialmente positivas para se adequar”, pondera Santos.
É preciso entender que existem temas controversos como o empoderamento feminino e o casamento entre homossexuais, e causas consensuais como a violência doméstica e a poluição. Um exemplo vem do Burger King. Quando a marca lançou o Whopper em Branco promoveu uma causa consensual porque mostrava a importância do voto. A ação foi realizada em outubro de 2018 na loja da Avenida Paulista, em São Paulo, que foi equipada com uma urna eletrônica personalizada.
Os consumidores podiam votar em um candidato ou em branco. Quem votou em branco recebeu um lanche com a mensagem: “Esse é o Whopper em Branco, um sanduíche com ingredientes escolhidos por outra pessoa. E quando alguém escolhe no seu lugar, não dá para reclamar do resultado”. “Essa ação é positiva. Não é político-partidária. É cívica. Não tem um vetor ideológico”, ressalta Santos.
Em novembro de 2020, novamente a marca usou as eleições para incorporar uma atitude cidadã. Trocou santinho por desconto na ação Cupom Democrático, que tentou reduzir o volume de material político jogado nas ruas. Procurado, Burger King e sua agência, a David, não se manifestaram. “Dentro da ciência política, esse conceito é chamado Janela de Overton”, esclarece Nunes. O termo, que vem sendo muito discutido, fala que a sociedade possui extremos em termos de posicionamentos, e existem áreas centrais. Quanto mais próximo ao centro, mais consensuais são os temas.
Abrindo a janela
Grupos extremistas, tanto de esquerda como de direita, buscam ampliar a Janela de Overton para o debate de temas que antes não tinham visibilidade. A luta do movimento LGBTQIA+ evidencia a expansão da Janela de Overton. Identitário de esquerda a partir da década de 1960, ganhou manifestações até conseguir trazer, especialmente entre 2012 e 2013, a discussão sobre homossexuais que são discriminados e mortos.
Já na direita, estão elucubrações sobre terraplanismo. “Gestores de marca não podem entrar nesse tipo de discussão sem conhecer o seu pano de fundo. O problema é que eles não entendem sobre ciência política, o que está acontecendo na sociedade e nem sobre a Janela de Overton”, critica o professor da FGV. Dossiês de políticos agora dão lugar a dossiês de marcas. Nunes atenta para o processo seletivo do Magazine Luiza com cota para negros. “A empresa foi questionada na internet porque grupos de direita são contra cotas”, recorda.
No contexto das eleições de 2022, o melhor é não ultrapassar o limite cívico. “As marcas devem ainda considerar a audiência e não ir além do que praticam”, registra Santos. “Se quer uma posição mais confortável, apoie causas menos polêmicas. Mas entre com consciência, olhando para o propósito do negócio a fim de projetar uma imagem consonante”, orienta Nunes. Para o professor, não se trata só de marketing e posicionamento, mas sim de compreender a dinâmica da sociedade.
O olhar deve ser de longo prazo. “Que sociedade queremos?”, reflete Nunes. A pandemia da Covid-19 trouxe tristeza, perda de emprego, suicídio e dissolução de laços familiares. Segundo o professor, as marcas têm agora a responsabilidade de indicar o futuro como fez a Uber ao dizer Se você é racista, a Uber não é para você. De um modo geral, a esperança é que as marcas apontem para uma pacificação da sociedade brasileira. “Precisamos diminuir a tensão”, conclui Nunes.