“Fazemos isso pelos humanos… que são muito superiores a nós, animais. […] Eu sou uma cobaia. Meu pai foi cobaia, minha mãe, meus irmãos, minhas irmãs, meus filhos. Todos vão morrer fazendo esse trabalho, do mesmo jeito que eu”, diz Ralph, antes de ir “trabalhar”.
A fala está no curta-metragem #SaveRalph, que mostra a rotina de um coelho submetido a dolorosos procedimentos. Lançado em abril pela Humane Society International (HSI), o material feito em stop-motion é focado em 16 países prioritários, incluindo Brasil, Canadá, Chile, México, África do Sul e 10 nações do sudoeste asiático, mas segue circulando e repercutindo globalmente.
A nota “Animação #SaveRalph pede fim dos testes cosméticos em animais” é a notícia mais lida este ano no site do PROPMARK. Com novos acessos diários, o conteúdo está ainda nos 10 mais acessados desde outubro de 2019, quando a HSI divulgou uma pesquisa sobre a opinião do consumidor brasileiro a respeito do tema.
À época, o levantamento feito pelo Datafolha apontou que 73% dos entrevistados brasileiros desejavam legislação federal robusta contra testes cosméticos em animais. Além disso, revelou que para 75% deles, a “garantia de que um cosmético não foi testado em animais” influenciaria a compra.
Essa visão de futuro para o setor da beleza não é exclusiva do Brasil, país que, segundo a Euromonitor, atingiu US$ 29,62 bilhões em 2019 e seria o quarto maior mercado mundial de cosméticos e cuidados pessoais, atrás apenas de Estados Unidos, China e Japão.
Com massivos investimentos e pesquisas, a indústria cosmética caminha para eliminar a prática de testes em animais no mundo. Ano a ano o tema ganha mais relevância, especialmente como resposta a um perfil de consumidor que demonstra seu repúdio e cobra posicionamento das empresas.
Antoniana Ottoni é relações governamentais da HSI, que tem uma meta de alcançar proibições nos principais mercados de beleza até 2023. Entre as iniciativas há a participação na Animal Free Safety Assessment Collaboration (AFSA), para acelerar o uso de metodologias que não dependem de modelos animais para comprovar a segurança de ingredientes.
Os parceiros incluem gigantes do setor como Lush, Unilever, P&G, Avon e L’Oréal. “O debate ético sobre o uso de animais para testes cosméticos começou na década de 1980. O desenvolvimento tecnológico amadureceu muito. No Brasil, a discussão legislatória já dura quase uma década. Líderes da indústria estão trabalhando conosco para que mais nenhum animal precise sofrer ou morrer por testes”, explica.
Os testes incluem os de absorção, corrosão e irritação cutânea, corrosão e irritação ocular, sensibilização cutânea, fototoxicidade e toxicidade sistêmica. Os principais animais usados são coelhos, porquinhos-da-índia, ratos e camundongos, que nascem e são criados em biotérios para serem cobaias. Macacos e cachorros também aparecem nas denúncias que circulam constantemente em ONGs internacionais.
Já parte dos métodos alternativos existentes inclui testes in vitro, modelos computacionais, pele sintética 3D criada em laboratório, testes de alergia em voluntários humanos e o organs on a chip.
Objetivo sem fronteira e sem rótulo
Segundo a HSI, testes cosméticos em animais já foram banidos em 40 países, como Índia, Nova Zelândia, Coreia do Sul, Guatemala e Austrália. Nos Estados Unidos, que aprovou em 1938 a Lei Federal de Alimentos, Medicamentos e Cosméticos, houve proibição nos estados da California, Illinois, Nevada e Virginia. Outros consideram o tema. No Brasil, o Distrito Federal e nove estados também eliminaram a prática. Mas há o desafio de algo nacional.
Já tramita no Congresso Nacional há cerca de uma década o PLC 70/2014. Aguardando apreciação do Senado, o texto fala em “dispor sobre a vedação da utilização de animais em atividades de ensino, pesquisas e testes laboratoriais com substâncias para o desenvolvimento de produtos de uso cosmético em humanos” e “aumentar os valores de multa” se houver violação.
Além da pressão da HSI e da percepção popular, no Brasil grandes empresas aumentam esse coro. A Natura &Co, grupo formado pelas marcas Avon, Natura, The Body Shop e Aesop, é uma das que apoiam uma lei federal. “Nosso compromisso é desenvolver fórmulas seguras, eficazes e livres de crueldade com os animais em todos os mercados do mundo”, afirma em nota.
De acordo com a companhia, desde 2006 a Natura não testa em animais e só adquire ingredientes de fornecedores comprometidos com essa conduta. A empresa já desenvolveu mais de 60 metodologias alternativas, com o apoio de institutos de pesquisa e universidades do Brasil e do exterior. “Desde 2018, a Natura conta com as certificações Leaping Bunny, da Cruelty Free International, que atesta a não realização de testes em animais em seu portfólio, e da People for Ethical Treatment of Animals (PETA) pelo não-uso de testes em animais”, acrescenta.
Ainda segundo a companhia, a Avon atua há 30 anos no fortalecimento de organizações científicas, como o Institute for In Vitro Sciences – Instituto de Ciências In Vitro (IIVS), o Fundo para Substituição de Animais em Experiências Médicas (Frame) e a própria HSI. “Em 2019, tornou-se também a primeira empresa global de beleza com operações na China a eliminar os testes em animais para todos os ingredientes, em todas as linhas de produtos em qualquer lugar no mundo. A empresa investe em inovação para a testagem de novos produtos e em canais alternativos de distribuição para o mercado chinês, sem comprometer seu compromisso com o bem-estar animal ou a aderência à regulamentação local”, reitera.
Já a The Body Shop nasceu em 1976 com o compromisso de não testar em animais e contribuiu para a proibição no Reino Unido, em 1998, e na União Europeia, em 2013. Em 2018, a marca reuniu mais de oito milhões de assinaturas, em petição realizada em parceria com a Cruelty Free International, e entregou as assinaturas a ONU.
A Aesop também foi fundada nessa premissa e a Natura &Co afirma que ela não fez ou encomendou testes em animais desde sua fundação, em 1987. “Os fornecedores são acompanhados de perto para garantir a aderência a esses padrões e são submetidos a um sistema de monitoramento que é verificado por auditores independentes. Os produtos da marca também integram as listas Cruelty-Free e Vegan da PETA”, diz.
A virada do milênio marcou outro período-chave para o Grupo Boticário. A empresa aboliu 100% os testes em animais há 21 anos e investe a partir daí no desenvolvimento de tecnologias alternativas. “Hoje, são mais de 50 métodos desenvolvidos por nossos pesquisadores. Estamos ampliando nosso portfólio de produtos veganos e, desde 2018, esses itens são sinalizados aos consumidores. Em 2020, 85% dos novos produtos já nasceram veganos”, detalha.
O Grupo Boticário é outro defensor de uma lei no Brasil que coloque um fim nesta prática para todo o setor. Para isso, a empresa dialoga com a HSI e outras referências no tema. “O projeto de lei em âmbito federal é necessário sobretudo para garantir harmonização das normas de proibição em todo o território nacional e com legislações já existentes em outros países”, observa a empresa em nota.
Parceira da HSI, a P&G informou que também não realiza testes em animais para seus produtos produzidos e/ou comercializados no Brasil. “A P&G também reforça que não testa nenhuma das marcas de beleza e seus ingredientes em animais em qualquer lugar do mundo, a menos que seja explicitamente exigido por lei. Há mais de 40 anos, estamos empenhados no desenvolvimento de alternativas e investimos mais de US$ 460 milhões. Muitas de nossas grandes marcas globais de beleza, como HE e Aussie, são oficialmente credenciadas como Cruelty Free pela PETA”, informa em nota. No texto, a empresa ressalta também há muitos anos trabalha com a HSI e com a PETA para encerrar os testes de cosméticos em animais exigidos por autoridades globais.
Outra gigante que atua com a HSI, a L’Oréal afirma que não usa seus produtos cosméticos nem ingredientes de suas marcas em animais. A empresa ressalta que isso foi adotado em 1989, 14 anos antes da exigência por leis. “Existem formas eficazes que não utilizam animais para garantir a segurança de cosméticos. Há mais de 40 anos, a L’Oréal foi pioneira no desenvolvimento de uma pele humana reconstruída que é mais precisa para analisar como os ingredientes e produtos se comportam”, detalha.
Questionada sobre a China, um dos mercados mais delicados nesse assunto, a empresa explica que, estando no país, ajuda a impulsionar uma mudança real. “Por mais de 10 anos, temos trabalhado lado a lado com autoridades e cientistas chineses para que os métodos não baseados em animais sejam reconhecidos e substituam os testes em animais. Treinamos cerca de 100 cientistas chineses e 50 organizações diferentes. Temos visto um grande progresso nos últimos anos. Desde 2014, shampoos, géis de banho e produtos de maquiagem feitos na China não exigem mais testes em animais. Em maio deste ano, os produtos não funcionais importados também pararam de exigir tais testes, desde que tenham certificado de segurança do país de origem”, diz.
Com mais de 40 anos de experiência no desenvolvimento de abordagens alternativas, a Unilever afirma que colabora com mais de 50 parceiros-chave no mundo, como na iniciativa #BeCrueltyFree, da HSI. Em nota, a Unilever cita um programa de cinco anos para colaboração entre empresas e autoridades regulatórias. O objetivo é que as decisões de segurança cosmética sejam tomadas com abordagens não-animais.
Há ainda a capacitação para o longo prazo, com treinamento de cientistas de segurança em avaliações de risco não-animais da “próxima geração”. “Também como reconhecimento ao nosso compromisso com o trabalho contínuo em alternativas aos testes em animais e com a promoção de sua adoção em todo o mundo, a Unilever foi validada pela PETA como uma empresa que trabalha para a mudança regulatória. Isso indica que a Unilever não realiza testes em animais, a menos que sejam obrigatória e especificamente exigidos por lei. Algumas das marcas Unilever também são aprovadas pela PETA. Esse status reconhece o compromisso de não realizar teste em animais em qualquer local, e o logotipo da PETA é usado nas embalagens”, sinaliza.
Em seu site, a Nivea/Beiersdorf destaca que a política global da companhia é não fazer nem encomendar testes em animais, que ela atua há 35 anos para tornar a prática obsoleta. “Na União Europeia, onde fica a sede (Alemanha), desde 2004 os testes em animais são proibidos para cosméticos – e para todos os ingredientes desses produtos, desde 2013. Nossos laboratórios globais estão em conformidade com essa conduta No entanto, ainda há mercados que exigem por lei certificados que contenham esses testes. Neste caso, as pesquisas são conduzidas por institutos locais autorizados pelo governo, sem o envolvimento das empresas fabricantes. A Nivea não utiliza essas informações e não precisa delas para os relatórios de segurança e eficácia”, esclarece.
Parte do trabalho da empresa para mudar a realidade é o constante contato com autoridades governamentais, tanto como companhia quanto membro de associações da indústria. De acordo com a companhia, esse compromisso já mostra resultados práticos. “Na China, por exemplo, autoridades têm oferecido um procedimento simplificado de registro sem a necessidade de testes em animais para produtos como xampus e géis de banho que são fabricados localmente. Nós reconhecemos este avanço e continuaremos a defender que testes em animais para todas as categorias de produtos não são necessários. Além disso, apoiamos programas de treinamentos que visam ampliar o conhecimento sobre métodos de testes in vitro”, prossegue o material informativo.
A empresa cita que em 1992, seus pesquisadores da Beiersdorf desenvolveram o método básico do chamado Ensaio de Fototoxicidade da Captação do Vermelho Neutro 3T3, colocando este como “o primeiro método alternativo a testes em animais aceito de forma oficial (em 2000 na UE e 2004 na OECD)”. “Atualmente, o método para testar a tolerabilidade de ingredientes novos sob a influência de luzes UV é o padrão mundial e também o primeiro teste in vitro a ser aceito na China, por exemplo.”
Desafio extremamente complexo
Antoniana acredita que há um caminho favorável no Brasil, com a pressão das empresas e a atuação do Concea (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. O Concea tem a competência de monitorar e avaliar a introdução de métodos alternativos.
No site, o Concea explica que, quando o processo de reconhecimento dos métodos alternativos é validado e com aceitação regulatória internacional, os laboratórios que usam animais têm até cinco anos para substituir. “É um período plausível para que sejam feitas as adaptações necessárias nos laboratórios de teste, entendendo que envolvem obtenção de recursos, questões orçamentárias anuais, compra de equipamentos, contratação de pessoas, treinamentos e capacitações, e eventuais licitações e obras.”
Procurada para comentar o desafio legislatório no Brasil, a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), que reúne mais de 300 empresas, fala que trabalha com ONGS, autoridades, legisladores, reguladores e comunidade científica em prol da construção de uma solução definitiva para o tema. “A Abihpec entende como prioritária a aprovação do PLC 70/14, entendimento sinalizado publicamente pela entidade, com a inclusão deste projeto, na Agenda Legislativa da Indústria, ferramenta da CNI, onde cada setor industrial compartilha quais são os textos prioritários, em tramitação no Legislativo federal”, informa.
Além de ressaltar a importância do setor de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (HPPC), a entidade manifestou apoio setorial ao desenvolvimento dos métodos alternativos, sinalizando que se compromete a utilizá-los se validados. “O setor já defende há muitos anos a eliminação de testes em animais para produtos acabados”, cita.
Enquanto a legislação não define a questão no Brasil, empresas seguem seus compromissos firmados com o consumidor, com iniciativas como dispensar o uso de certos ingredientes quando não há métodos alternativos. “No Brasil e no mundo, há várias empresas livres de testes em animais, exemplos de como é possível inovar com segurança”, afirma Antoniana.