Um edifício. Um defeito. Um obituário. Gosto de acreditar que tudo pode ser inspiração.
E essa crença já me meteu em muita furada.
Assisti a filmes experimentais que ninguém deveria experimentar.
Vi obras de arte que poderiam ser chamadas apenas de obras.
Comi pratos feitos com ingredientes que só tinha visto em documentários do Animal Planet.
Mesmo assim, sigo firme acreditando que tudo pode ser inspiração.
Uma hora a recompensa chega. E as ciladas viram histórias engraçadas.
Por isso, sigo curioso.
Dizem que a curiosidade matou o gato.
Mas, pode acreditar, ela fez muito mais do que isso.
Se Tinker Hatfield, designer da Nike, não fosse curioso, talvez não tivesse se interessado pela obra mais famosa dos arquitetos Renzo Piano e Richard Rogers: o Centro Georges Pompidou. O edifício, que chocou a sociedade parisiense pela ousadia, foi inaugurado em 1977, mas continua moderno até hoje. Exibindo suas tubulações estruturais, que até então sempre foram escondidas em qualquer construção, o projeto foi um divisor de águas na arquitetura. Até aí tudo certo. Nada mais normal do que um edifício mudar a arquitetura.
Mas o Pompidou foi além. Também mudou o mercado de sneakers. Foi a inspiração para Tinker. Assim como o projeto arquitetônico, o designer exibiu a parte estrutural do tênis que ficava escondida: o sistema de amortecimento a ar. E assim surgiu o Air Max 1. Um dos tênis mais icônicos de todos os tempos.
A inspiração pode vir de onde menos se espera, até de um defeito. Pois é, foi em um defeito que o ilusionista Georges Méliès encontrou a tal da mágica do cinema. No fim do século 19, os parisienses estavam em êxtase com a nova invenção dos irmãos Lumière: o cinematógrafo. A nova máquina despertou a curiosidade de Méliès. O ilusionista saiu pelas ruas de Paris filmando tudo o que podia. De repente, um defeito fez a máquina parar e voltar a funcionar. Mais tarde, ao ver o material, Méliès percebeu algo diferente. Algumas pessoas sumiram do filme e outras apareceram de repente na cena. Pronto. O defeito ganhou o nome de stop-action. E o cinema ganhou os efeitos especiais.
É, achar a inspiração não é fácil. Às vezes está em um filme norueguês de zumbis nazistas na neve.
Ou no papo com seu tio-avô, que já esqueceu seu nome, mas ainda lembra de uma história incrível que viveu na infância.
Não dá para menosprezar nenhuma fonte.
Se John Lennon tivesse menosprezado o obituário de um jornal, não ficaria sabendo da morte de Tara Browne.
Em dezembro de 1966, o herdeiro da cervejaria Guinness morreu em um acidente de carro, com 21 anos. Um garoto que tinha o mundo pela frente, mas a única coisa que achou foi um furgão estacionado.
Esse triste fato foi a inspiração para os primeiros versos da música A day in the life. A faixa seis do lado B do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, obra-prima dos Beatles.
É, a recompensa da curiosidade pode ser realmente incrível.
Por isso, apesar de me meter em algumas furadas, eu continuo curioso.
Procurando a inspiração em todos os lugares.
Em um edifício. Em um defeito. Em um obituário.
Andre Pallu é diretor de criação da FCB Brasil
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