Viver de fazer freelance exige talento. A oferta de gente que premida pelas circunstâncias está vivendo “de bico”, que era como se chamavam quem não tinha emprego fixo, cada dia aumenta mais. É claro que sempre existe a desculpa de que se tem mais liberdade, que é possível dispor melhor de seu tempo. Mas nós todos sabemos que – salvadas honrosas exceções – viver de frila é viver na corda bamba e eu não desejo para ninguém a eterna expectativa de que os anjos resolvam cumprir seu papel e sussurrar nosso telefone no ouvido de quem queira um servicinho. E para sobreviver como freelancer não basta ter talento específico para sua atividade. É preciso também uma enorme capacidade de mentir. O que, me pergunta o leitor distraído, mentir? Sim, mentir deslavadamente, visceralmente. Eu diria até orgulhosamente, nem que seja para rimar.

Por que mentir? Não é possível viver de frila e falar a verdade? Respondo: não. Um freelancer que se disponha a falar a verdade em qualquer circunstância é um suicida, um candidato ao fracasso. Um freelancer não pode dizer que está há dias esperando o telefone tocar para fazer um servicinho qualquer, uma marquinha, um texto, um release, um leiautezinho mixuruca. Jamais. O mundo abomina os fracassados. Freelancer que se preze está sempre ocupado e deixa claro que aceitará o serviço que lhe é pedido somente em nome da amizade. Mesmo que jamais tenha visto o provável cliente. Outra questão é o preço.

Freelance não tem preço. Puta tem, garoto de programa tem, eletricista tem. Publicitário freelancer não pode ter. Freelancer é uma alma generosa disposta a ajudar o mercado trabalhando pelo que se tem de verba, ainda que signifique uma quantia infinitamente menor do que costuma cobrar. Não se pode ter vergonha de afirmar coisas como “meu preço para este serviço é mil, mas já que você está com a verba apertada, concordo com seus cinquenta”. É do jogo. Prazo é outra ciência. Trata-se de uma fantasia, um delírio. Aceitar um prazo pedido é talvez o maior erro de quem vive de frila pode cometer. Mesmo que você esteja há dias jogando freecell no computador, nunca aceite um prazo. “Quer para amanhã? Impossível, estou cheio de trabalho. Mas, como é para você, abro uma exceção e entrego depois de amanhã, mesmo que tenha de botar seu pedido na frente de vários outros jobs… Faço-o em nome de nossa amizade e de sua urgência”.

Cuidado nessa hora com o tom de euforia na voz. Um ligeiro enfado é aceitável. Um leve ar de cansaço, como se fosse um sacrifício imenso maldisfarçado. Alguns artistas da área aproveitam a oportunidade e ainda vendem seu peixe para autovalorização. “A Globo está ansiosa… a IBM eu enrolo, a Disney posso passar pro assistente e um projeto secreto que estou desenvolvendo pode esperar mais um dia”. Não é preciso se preocupar com a verdade nessa hora. Todo mundo está fazendo alguma coisa para a Globo, todos têm algum projeto com a IBM ou está esperando uma resposta da Netflix. Pode mentir sem medo. Um outro detalhe importante é com o briefing.

Jamais mostre surpresa ou insegurança diante de qualquer pedido. Sempre faça uma comparação com algo que você já tenha estado próximo. Diga alguma coisa como: “sei do que você está falando! Na Sweetgreen deu certíssimo!” Se o interlocutor perguntar se você trabalhou para a Sweetgreen seja vago: “estive envolvido num projeto com eles”. Outra coisa é o horário. Pega bem acordar cedo. Não sei por que, mas atualmente está havendo uma supervalorização desses desvios de comportamento, do tipo marcar um call às 8 da manhã. Proponha sem medo – ninguém vai aceitar, mas você cria uma imagem bastante positiva. O risco é o interlocutor concordar com esse desvario.

Mas sempre existe a saída de consultar a agenda e dizer que infelizmente, nessa hora, tem uma call com o Japão, que talvez seja melhor deixar para as 11. Enfim, espero ter ajudado os milhares de colegas que tiveram de trocar um emprego maneiro, com carteira assinada, décimo terceiro e férias para viver neste mundo inseguro do frilancismo. Vou parar por aqui. Está tocando o telefone. Vai que é um cliente pedindo algum servicinho. E, não se esqueça. Qualquer coisa estou às ordens…

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor
lulavieira.luvi@gmail.com