Começou o BBB e, com ele, a vigília de milhões de espectadores à espera de o jogo começar de fato para opiniões canceladoras. Pensando melhor, o tão comentado ‘cancelamento’ começou antes mesmo de o jogo, de fato, começar. Já no anúncio da primeira participante, veja você, a internet já havia eleito a sua primeira antagonista. A primeira pessoa odiada do reality.
E com sua estreia vem um recorde de patrocinadores e a Globo já assegurou um recorde histórico de marcas nos intervalos e nas ações publicitárias do reality show: pelo menos R$ 600 milhões de faturamento com o programa. Uma contradição, aliás, com as falácias de “alerta vermelho" das marcas e o medo de serem canceladas na edição passada.
Aliás, eu bem me lembro que, em meio ao sangue cibernético do ostracismo com imagens dos participantes e das próprias marcas, a emissora divulgou nota para “tranquilizar" os anunciantes: “As discussões geradas provocam reflexão sobre temas relevantes para os participantes e também para o público, impulsionando movimentos de conscientização, mobilização para mudanças e gerando consequências na própria dinâmica do programa, com a eliminação daqueles cujo comportamento agrade menos a audiência”, disse a emissora àquela época.
Mas nem precisava "tranquilizar" quem estava em paz e com segurança em suas intenções de comunicação. As marcas sabem das suas metas. Ninguém é bobo. E, certamente, estar em um programa de recordes é um tiro de canhão para gerar awareness. E quem prova isso são os números da atual temporada. Contra fatos não há argumentos.
Quem precisa estar em paz são os telespectadores que apenas repetem, na internet, o que era feito em praças públicas: a humilhação e eliminação do outro. Precisam levantar a bandeira da paz para não machucar mais ninguém e também de paz para administrar um impulso primitivo: a ira.
Robert Greene bem lembrou em seu livro sobre as Leis da Natureza Humana:
"No passado, as pessoas assistiam a execuções como uma forma de entretenimento. Não vamos mais tão longe, mas cada vez mais indivíduos gostam de ver outros sendo humilhados em reality shows ou no noticiário, e de se deleitar com jogos e filmes repletos de representações explícitas de assassinatos e carnificina. [...] Com a tecnologia, tornou-se mais fácil expressar e satisfazer os nossos desejos agressivos. Sem ter que encarar os outros fisicamente, na internet as nossas discussões e críticas passam a ser muito mais hostis, acaloradas e pessoais".
A raiva motiva a união dos grupos, concentra a plateia em pautas comuns, gera debates sociais também - como afirmou a emissora em seu comunicado no ano passado - mas o mais oportuno: concentra o grupo em torno do show. E atrai marcas que precisam estar na mente desses grupos. É uma simbiose perfeita!
A ira é um fator político-psicológico que move acontecimentos desde a origem da civilização. Na pré-história os nossos ancestrais sentiam medo ante as tribos rivais. E o medo se transformava em ódio com um efeito colateral positivo: unificava e estreitava laços. O homem evolui, as formas e os meios de comunicação também. Mas, uma coisa não mudou até hoje: o sentimento. E é justamente isso que impulsiona as ações humanas. Qualquer grupo se concentrará em atacar e desqualificar o inimigo em comum para unificar a tribo. O inimigo não presta. E, claro, o nosso grupo é sempre “perfeito”! Ninguém assume isso porque o inferno são sempre os outros.
Freud já havia preconizado que a agressividade é uma energia vital que assume autonomia diante da injustiça e das ameaças de abusos e humilhações. Que é um modo
de se reafirmar os valores e travar lutas pelo poder nos campos políticos e sociais.
O ira contra os outros - em um espaço cibernético simultâneo e multiplicado - ficou mais fluida a partir do rompimento com as instituições controladoras surgidas durante a Revolução Industrial. Não tem mais fronteiras, territórios e observação de ninguém. As manifestações afetivas se distanciam das instituições com amplas e resistentes identidades. Está mais fácil manifestar as pulsões agressivas em forma de vigilância disciplinar no mundo da automação. Não há contato físico. É muito fácil agredir.
A agressão é feita quando a nossa imagem ou a imagem do nosso grupo é ofendida. A Teoria do Espelho freudiana defende que temos grande paixão pelo que é nosso: família, igreja, partido. Somos capazes de agredir e ser agredidos por essa paixão narcísica que é a mola propulsora da agressividade. Aliás, ele mesmo já havia identificado que os homens não são criaturas gentis e amigáveis [Good vibes do Insta] que desejam o amor e que só de defendem quando atacadas… Um desejo poderoso de agressão tem que ser reconhecido como parte da capacidade humana.
Hater sempre existiu. Só mudou para um nome chique, cibernético. E, como qualquer outra pessoa, só quer pão e circo. Então, por favor, em seus impulsos sentimentais não cancele nenhuma marca. Ela está ali no circo apenas para te vender pão.
Luciéllio Guimarães é especialista em reputação social e fundador da iMAGEM Academy, fomentadora de conteúdos educacionais “anti-cancelamento" para universidades, empresas e sociedade