Amir Kassaei, CCO da DDB Worldwide, fez uma das últimas palestras no Cannes Lions este ano e deu uma bronca no mercado: a propaganda está perdendo a relevância e se descolando da realidade. Ele acredita que a publicidade voltou seu foco para a tecnologia, as novas tendências, e esqueceu do verdadeiro consumidor que está nas ruas e para quem a maioria das coisas criadas, consderadas inovadoras e criativas, hoje não fazem sentido.i “Publicitários criam ‘coisas’ que não têm serventia no mundo real”, alfinetou, e ganhou aplausos entusiasmados.
Kassaei estampou no telão um anúncio clássico do fundador da DDB, um manifesto publicado pela Doyle Dane Bernbach Inc. nos anos 60 que propunha que se resgatasse o sentido da propaganda. “Temos o poder e a capacidade de enganar as pessoas. Ou achamos que temos. Mas estamos errados. O que colocamos nas páginas em branco e nas telas das TVs precisa ser verdadeiro. Porque, se jogarmos com a verdade, morreremos. E contar a verdade de um produto depende da relevância de sua verdade. Infelizmente, nem todos a possuem. Se brincarmos com isso, também morremos. Porque nenhum jumento corre atrás da cenoura para sempre. Ele consegue pegá-la, ou desiste. É essa a lição a aprender. Se não aprendermos, morreremos. Morreremos no mercado, nas prateleiras, nas embalagens reluzentes e promessas vazias”, provocava o anúncio. Soa atual?
Afinal de contas, o quanto a publicidade mundial anda de fato mergulhada no mundo da fantasia e desconectada das necessidades verdadeiras do consumidor? Como resgatar o sentido naquilo que a publicidade faz nos tempos atuais – tempos de proliferação de house agencies nos clientes, departamentos de procurement e adoração desmedida a tudo o que se faz no Vale do Silício? A publicidade parece estar um pouco perdida na tarefa de conectar os pontos entre aquilo que fazia no passado, seu papel hoje, e como se delineia o futuro. Para onde caminhamos?
A questão levantada por Kassaei certamente está diretamente relacionada à própria transformação do festival ao longo do tempo. O que se vê nele parece se distanciar, cada vez mais, daquilo que se vivencia no “mundo real”, longe do sul da França. Em artigo no Wall Street Journal, publicado no dia 24 de junho e com o instigante título “Está Cannes se tornando maior e menor ao mesmo tempo?”, Jeff Goodby, copresidente e sócio da Goodby, Silverstein & Partners, disse que talvez esta tenha sido sua última ida a Cannes.
“Antigamente o negócio girava em torno de coisas que se tornavam famosas e eram surpreendentes. Você entrava no táxi e logo descobria se fazia alguma diferença no mundo apenas ao consultar o motorista. Todos os seus amigos sabiam o que você fazia o dia inteiro. Hoje, ninguém mais sabe o que fazemos. E temos que admitir que temos dificuldade em explicar até para nós mesmos”, disse Goodby, para quem os trabalhos vistos em Cannes geram discussões bem menos fervorosas do que há cinco ou dez anos atrás.
Brasileiros
Washington Olivetto conta que, dois dias antes da palestra de Kassaei, conversava sobre relevância num jantar com conselheiros da Berlin Creative Leadership, entre eles, Michael Conrad e Keith Reinhard – que dirigiu a DDB mundial. “Concordo, e bastante, com o raciocínio de Amir (Kassaei). Trata-se de irrelevância travestida de relevância.”
Para Marcello Serpa, sócio e copresidente do board da AlmapBBDO, e que fez parte do júri do novo Glass Lions este ano, Kassaei, assim como Goodby, toca numa ferida aberta. “Quando metade dos prêmios dados são para causas e entidades sem intenção de lucro, fica claro que temos um problema na indústria: quem paga essa conta são os clientes. São as marcas que financiam a filantropia das agências, dos criativos. Além de ser claro que essa conta não vai fechar, cria-se uma percepção de que fazer o ‘bem’ para a sociedade e ao planeta é muito mais digno do que vender uma lata de refrigerante ou um sabão em pó. A propaganda perde relevância quando os próprios criativos não acreditam mais nela”, diz. Segundo ele, muito do que Kassaei disse em sua palestra já se ouve nas ruas de Cannes há algum tempo. “A revolução digital provocou uma mudança de critério nos festivais. Busca-se desesperadamente o novo, o inovador, e não mais o bom, o brilhante e a inteligência.”
Átila Francucci, fundador da consultoria de estratégia e criatividade aplicada Francucci & Co, diz que existem duas reflexões sobre a palestra de Kassaei em Cannes: a primeira sobre o festival em si. A mecânica do evento nos últimos dez anos, com a criação ininterrupta de categorias cada vez mais sobrepostas, fez com que a grande maioria das agências “profissionalizasse” o que inscreve em Cannes, sendo elas mesmas o público dessas campanhas. “O alarme disparado por Amir Kassaei torna-se ainda mais grave quando constatamos que a indústria inteirinha passou a aceitar essa espécie de metapropaganda: agências, produtoras e clientes. O dia a dia passou a ser uma coisa e Cannes outra – com a anuência de todos. “É o rei, nu, mas protegido por um grande pacto de silêncio entre os súditos.”
A segunda reflexão que ele destaca é exatamente o distanciamento entre o que separa o mundo real do Palais: como se comunicar de verdade com as pessoas nos dias de hoje? “As marcas terão que se comunicar cada vez mais pelo que fazem do que pelo que dizem. Dizer uma coisa e fazer outra se tornou mortal (vide Dilma Rousseff). Ty Montague, que escreveu o livro ‘True story – how to combine story and action to transform your business’, defende que as pessoas e suas necessidades têm de estar no centro de tudo.”
Nizan Guanaes, do Grupo ABC, acredita que o grande desafio dessa indústria é se manter relevante. “E o que diferencia Droga5, Wieden+Kennedy, Adam&Eve, DDB, R/GA, AlmapBBDO e Africa é que elas são relevantes para seus clientes nos mercados em que atuam. Relevância é o nome do jogo e se o Amir Kassaei não tivesse razão em seu alerta, não teria sido ovacionado de pé.”
Marcello Magalhães, sócio e vice-presidente de planejamento estratégico da Leo Burnett Tailor Made, relativiza: se por um lado há um certo deslumbramento e um descolamento por parte de muitas agências – que têm uma ideia primeiro e depois vão buscar um problema que as torne relevante, uma situação onde o “rabo abana o cachorro” –, há gente séria investindo tempo e dinheiro para entender melhor o comportamento das pessoas, seus desafios e criando ideias relevantes para a vida das pessoas. “É necessário resgatar o envolvimento e o conhecimento profundo do negócio do cliente. E a melhor forma de fazê-lo é criar uma rotina de trabalho que proporcione esta vivência. Aí estão os verdadeiros insights para as agências. Na Leo temos um conselho global (GPC) que se reúne a cada três meses para avaliar a qualidade do trabalho da agência, não apenas o trabalho que se destaca pela criatividade e que é elegível a prêmio, mas aquele trabalho que colocamos nas ruas todos os dias. É aí que nosso controle de qualidade precisa estar atento”.
Daniel da Hora, diretor da DH,LO Creative Consultancy, acredita que o que Amir fez em Cannes foi uma espécie de “enfrentamento como catarse pessoal”, especialmente por sua história de vida. Acredita que ele não pode ser “julgado” pelo tom que usou no Palais, e declara não concordar com o que o publicitário disse. “As pessoas podem estar cansadas da propaganda chata e que interrompe. Mas toda a geração de Millenials é ávida consumidora digital, está mais conectada do que nunca e mantém relacionamento com marcas a partir de tecnologia e dispositivos. São a tecnologia e seus derivados que permitem que hoje as marcas entreguem muito mais que propaganda. Se o público mediano ainda não está totalmente conectado, é uma questão te tempo. Num espaço como o do Cannes Lions deve-se sempre olhar para a frente, nunca para trás.”
Já o ganhador do primeiro Grand Prix em Film para o Brasil, Fabio Fernandes, da F/Nazca Saatchi & Saatchi, diz que, acreditar que a propaganda é o Festival de Cannes é o mesmo que acreditar que todo jogador de futebol recebe o mesmo salário que o Messi. “Respeito o ponto de vista do Amir Kassaei, mas não concordo. Talvez ele esteja se referindo à prática de algumas agências, inclusive grandes corporações multinacionais, de desenvolver peças com o intuito apenas de atrair a atenção e a admiração de jurados em festivais. O dia a dia da propaganda é muito mais profundo e duro do que o glamour e a excelência de Cannes”, diz.
Na vida real, ele acredita, já existem amarras suficientes à criatividade. “As amarras são geradas justamente pela necessidade premente e, muitas vezes até exacerbada, de estarmos conectados com as vontades, as verdades, as manias, os desejos, os gostos dos consumidores. Acho que o meio termo seria o ideal.”