Delport: as pessoas não detestam a publicidade, mas querem transparência

 

Dominique Delport comanda a direção global do Grupo Havas Media, unidade do Havas Worldwide, em Paris, desde novembro de 2012. O executivo, um ex-jornalista, afirma que a indústria de publicidade enfrenta uma crise de confiança após o escândalo de espionagem global envolvendo a NSA (Agência de Segurança Nacional) dos Estados Unidos e seu programa de coleta de dados Prism. Delport diz que o caso afeta a indústria, cada vez mais amparada em dados. Nesta entrevista, realizada no final de setembro durante o Festival of Media Latam, em Miami, ele fala de direitos que despontam na era do big data, como o direito de não ser rastreado – inclusive pela publicidade.

Você era um jornalista que virou empreendedor e recentemente assumiu um cargo global no grupo Havas. Como foi essa trajetória?
Eu tenho três vidas: a primeira, como jornalista de TV, por 10 anos, na M6, canal fechado da França. Em 2000, estava completamente entusiasmado com a internet e me demiti para ir a um local muito pequeno, em Paris, para criar uma startup, a Streampower, relacionada à transmissão de conteúdo pela internet. Criamos uma empresa de 60 milhões de euros, que ganhou um Emmy Award. A companhia interessou ao Martin Sorrell. Na mesma época, Bolloré [Yannick Bolloré, chairman do Havas] também estava interessado no projeto e, no fim, segui Bolloré, que me promoveu para a terceira parte da minha vida, dessa vez como executivo. Minha missão era mudar o Havas Media. Naquela época, ele se chamava MPG, era o segundo no mercado francês, mas um tanto silencioso. Meu trabalho era digitalizar o MPG. Fizemos isso nos primeiros cinco anos, integrando tudo, quebrando os silos. Dobramos o tamanho da companhia, aumentamos nossa participação no mercado e passamos a ser uma operação altamente lucrativa, amparada no digital e beneficiando as agências também. Em novembro de 2012, fui promovido a diretor-geral do Havas Media Group globalmente para replicar o que havia feito na França agora em grande escala, para a rede global em 126 países.

Você mencionou que há uma crise de confiança na era do big data. Quais são as iniciativas na indústria de publicidade para trazer a confiança de volta?
Quando falamos sobre big data, estamos nos referindo a pessoas. Afinal, são dados pessoais os dados de um consumidor. É questão de privacidade, de intimidade. É o direito de ser anônimo ou de não ter seus dados traqueados e armazenados em algum lugar quando você faz atividades online. Um colunista no New York Times disse recentemente que em pouco tempo teremos que fazer uma escolha, viver livre ou estar online. Sabemos que o mundo digital encapsula toda a nossa pegada digital, que deixamos a cada vez que logamos em algum website, que damos check-in geolocalizado, que nos conectamos a uma rede social. Será muito importante para as pessoas considerar que é necessário ter cuidado com sua identidade digital, e todos temos uma ID digital hoje. Há um estudo recente do Pew Internet Institute, segundo o qual, depois de hackers e criminosos, marcas são o terceiro grupo que as pessoas mais temem no mundo online. Isso não significa que as pessoas detestem publicidade. Mas elas querem transparência. Quando nos cadastramos em uma rede social, damos detalhes sobre nossas vidas: quem somos, nossas crenças, nosso estado civil etc.

Por que entramos nessa crise?
Nesse verão, vimos Orange e Barclays vendendo milhões de dados de seus consumidores, algo possível graças a uma minúscula mudança de contrato. As pessoas não sabem o que está acontecendo de fato com seus dados e isso já é um negócio para muitos. Temos um manifesto global, “Meaningful Brands”, para o qual ouvimos 134 mil pessoas em 23 países sobre 700 marcas. A pesquisa contém uma pergunta muito simples: se tal marca desaparecesse, você se importaria ou não? Para 73% das marcas, as pessoas disseram que elas simplesmente não se importariam. É uma realidade muito cruel. Apenas 20% das marcas são consideradas necessárias, seja pelos seus produtos, seja pela sua função social. Se a indústria de publicidade quer trazer o amor de volta, tem que trazer de volta a confiança também. Quando há um mal-entendido severo numa relação, é necessário reconstruir a confiança. Há um problema gigantesco na relação de confiança entre marcas e consumidores. E, para resolver isso, é necessário transparência: o que você diz precisa ser o que você faz. Sua “mídia paga”, o que sua marca diz de si, e a sua “mídia ganha”, o que as pessoas falam sobre sua marca, precisam estar alinhadas. Se as duas não desenham uma imagem única, sua mídia paga é completamente irrelevante.

Você acredita que o Brasil exagerou na reação aos Estados Unidos sobre o escândalo da NSA?
Não. O governo brasileiro foi espionado! Isso é gigantesco. Honestamente, isso foi chocante. O que é muito interessante no espírito norte-americano é que imediatamente [após o escândalo] todos os grandes players de internet revisaram as solicitações das autoridades legais e Barack Obama pediu que a administração pública divulgasse tudo e que fosse mais transparente. Como todos sabemos, no começo era o Patriot Act [lei contra o terrorismo aprovada logo após o 11 de setembro, em 2001] que caminhou para longe dos seus objetivos iniciais. Nem George Orwell, em “1984” [clássico da literatura publicado em 1949 sobre um sistema autoritário], poderia imaginar tanta bagunça. Isso nos mostrou que os cidadãos têm o direito de saber o que está acontecendo. O que é interessante no caso de Edward Snowden [espião que vazou as informações sobre o caso NSA/Prism] é que 54% dos norte-americanos afirmam que ele estava certo em revelar o que ele revelou, mas 53% acreditam que ele errou em deixar o país e que ele deveria ser processado. É um mix de emoções. Mas, para brasileiros, colombianos, venezuelanos, para as pessoas da Petrobras, o que aconteceu é extremamente chocante. Na França também houve espionagem e todas as democracias ocidentais europeias tiveram que se acostumar com a existência de unidades de espionagem contra o terrorismo. Mas, com certeza, houve um armazenamento de informações muito além das relacionadas ao terrorismo.

Como um acontecimento desses afeta a publicidade, cada vez mais baseada em dados?
É o maior escândalo envolvendo data da História. Nos anos 70, houve o Watergate, com as gravações de Richard Nixon, algo que envolvia dados. O que aconteceu nos últimos meses é diferente e nos mostra que saímos dos dados lineares para os dados circulares. Dados hoje podem ser um “like”, uma foto, uma postagem, vídeos, qualquer coisa. Há um volume muito heterogêneo de informações. Não há precedentes na história. Cada um cria dados de forma exponencial. Um exemplo é Nike Fuel+Band: cada pessoa produz e disponibiliza informações sobre si. Por isso hoje podemos traquear tudo: como uma pessoa dorme, come, anda, vive. As pessoas adoram isso porque passam a conhecer melhor a si mesmas. Estamos nessa corrida em que as pessoas estão voluntariamente produzindo mais informações que podem ser armazenadas e usadas contra elas. Se não houver alguma autorregulação para a indústria publicitária, podemos ter problemas.

O quanto a indústria está madura para falar de autorregulação em coleta de informações?
A indústria de publicidade não está madura, já que o conceito de big data tem mudado muito rapidamente. Nós sabemos, contudo, que a indústria está sob intenso escrutínio. Como informações irão, invariavelmente, apresentar mais questões que respostas, todos precisamos nos tornar melhores ouvintes. Nosso estudo “Meaningful Brands” mostra que a confiança está mais baixa do que nunca. Se você olhar para o recente estudo Pew Report, segundo o qual  55% das pessoas tomaram medidas para proteger suas informações online, verá que, seja o que for que a indústria esteja fazendo, não é suficiente. Minha visão é que ou a indústria se autorregula ou ela será regulada. Mas os sinais agora dizem que a maior ameaça, a rejeição pública, virá antes dos reguladores.

O que um conglomerado de comunicação como o grupo Havas pode fazer nesse sentido?
Somos muito sérios sobre sermos ágeis e reativos a essa questão. É por isso que nos reestruturamos como grupo e adotamos uma forma muito mais simplificada e flexível na forma como trabalhamos. Desde 2001 investimos em dados por meio de nossa plataforma Artemis. Recentemente, nós trouxemos matemáticos para o time de marketing. Eles estão nos ajudando a acelerar nossa ferramenta de marketing programático – o Affiperf – em todos os nossos escritórios. Em novembro, lançaremos um manifesto sobre “meaningful data”. Queremos liderar o movimento por transparência com nossos clientes e para seus consumidores. O manifesto será como um Privacy Act [lei de 1974 sobre a privacidade de informações pessoais], explicando como manuseamos e como usamos data em um nível global.

Você disse que o Havas Media é o maior grupo de mídia na América Latina, mas, no mercado brasileiro, não temos distinção entre agências criativas e de mídia. Como avalia a performance do Havas no país?
Não somos o primeiro no Brasil. Mas em toda a América Latina lideramos o mercado. Somos imbatíveis em integração. No ambiente corporativo, não há um grupo de comunicação que seja tão simples como nós somos. Nossas duas unidades de negócio são uma rede criativa [Havas Creative] e uma rede de mídia [Havas Media]. O que tentamos fazer com o Havas Village [reestruturação na matriz ocorrida no início de 2013] foi unir essas duas esferas. Em Paris, temos 2.500 pessoas trabalhando juntas. Não espere ver isso em outros grupos. Recentemente, no México, incorporamos uma unidade, a Havas Production,  para a produção de notícias em formatos como documentário para televisão e longa-metragem. Também produzimos neste ano, por meio de nossa agência criativa em Paris, um lucrativo filme local.

É esse tipo de atuação que pretendem trazer para o Brasil agora que unificaram suas agências no país também, com o Havas Village?
Com certeza. Nossa ambição é ajudar a reinventar a indústria. Estamos em uma encruzilhada. A mudança nunca foi tão vagarosa, mas a aceleração será muito mais rápida daqui para frente. Quem não mudar, ficará para trás.

Você mencionou que o grupo mudou drasticamente nos últimos nove meses. O que essas mudanças significaram em receita?
Há dois anos, tínhamos MPG, Arena, Havas Sport, entre outras unidades, ou seja, silos. Em menos de um ano, nos livramos disso. Alinhamos todos em nível global e local. Nos últimos seis meses, ganhamos duas contas ótimas: LG Eletronics, a terceira maior produtora de eletroeletrônicos do mundo, e Emirates, uma marca incrível. É ótimo trabalhar com essas empresas porque nós somos uma companhia multicultural. Somos sortudos de ter executivos visionários como os que estão na LG e na Emirates, que sabem que suas companhias precisam de uma transformação radical. Estamos muito orgulhosos de termos sido escolhidos para ajudá-los nessa mudança. Mesmo com a fusão de Publicis e Omnicom, o projeto do Havas ainda faz sentido.