Outro dia um leitor (eu tenho pelo menos um!) me escreveu confessando ser assíduo consumidor destas mal traçadas linhas, onde me permito contar velhas histórias. Depois das gentilezas de praxe, nas quais acreditei com entusiasmo, completou: mas tudo acontece com você? Não, amigo, não há nada excepcional nesta minha vida. Eu só tenho estado muito tempo por aqui. E tentado prestar atenção. Só isso. Como Drummond já disse, todas as vidas são tão interessantes como as de Robson Crusoé. O que é preciso é olhar para o lado. Mas de vez em quando eu acho que algumas coisas só acontecem mesmo comigo, assim como muitas coisas só acontecem com algumas pessoas. Um exemplo? Há muitos anos eu fui contratado para criar e dirigir os programas de TV de um partido político. Já vou avisando que não era o PT porque estou contando uma história, não abrindo debate. Para não ser indiscreto e continuar mantendo o necessário sigilo, o candidato do lado contrário era o Brizola, o nosso era o Ronaldo César Coelho e o senador era Técio Lins e Silva. Mantido tudo em segredo, continuo.

Num fim de tarde, eu e o Roberto Feith resolvemos sair para jantar. No estúdio, havia uma fila de candidatos a deputado esperando para gravar, todos ansiosos para demonstrar sua preocupação com saúde, segurança e educação. Ou com segurança, educação e saúde. Para variar, tinha gente preocupada com a educação, a saúde e a segurança. Antes de sair, pedimos à diretora de imagens que, caso o candidato a vice-governador aparecesse para gravar, um tal de Carlos Lessa, ele teria preferência absoluta. Afinal, além de figura ilustre, Lessa merece o maior respeito, por ser um professor universitário célebre, ex-presidente do BNDES, homem de cultura vastíssima e de passado exemplar. Aliás, na chapa inteira, Lessa era “aquele do qual não resta a menor dúvida”, uma garantia moral. A moça ainda perguntou se haveria algum tema que pudesse ser recomendado para o ilustre candidato desenvolver. Nós achamos que Lessa poderia falar, e bem, de qualquer assunto. Mas como o tema do momento era emprego, dissemos que se ele desejasse uma sugestão, esse seria um bom caminho. Geração de empregos. E fomos ao restaurante, onde, diante de um belo jantar e uma garrafa de vinho, começamos a salvar o Rio de Janeiro e – por consequência – a própria humanidade. Faço uma pequena correção em nome da verdade. Diante de garrafas de vinho. Um plural necessário. Horas depois, toca o celular e na outra ponta da linha uma voz desesperada diz: “ou eu ou o Lessa ficamos completamente loucos…, mas acho que vocês precisam vir para cá com urgência!”

Corremos ao estúdio de volta e encontramos um sujeito alto, de paletó azul-marinho, gravata vermelha, bermudas, fazendo um interminável discurso dizendo que no Brasil não havia problema de emprego, só tinha vagabundo querendo mamata, que era por isso que os japoneses, turcos, portugueses e judeus ficavam ricos quando migravam para cá, pois não queriam viver na moleza e pegavam no pesado. Que mulher, em vez de ficar em casa criando filhos e cuidando do marido, agora quer ter direitos, trabalhar fora, deixando as crianças fumando maconha, virando viado ou galinha. “E digo mais – bradava o cidadão -, agora com essa mania de direitos humanos, vagabundo fica rindo da cara da polícia, que não pode baixar o cacete”. Perguntei quem era o doido. A produtora respondeu que era Carlos Lessa. Eu conheço bem o Lessa e aquele cara, definitivamente, não era ele. E continuamos ouvindo: “outra coisa que vamos mudar é botar os presos para trabalhar, abrir estradas, varrer as ruas…”.

Temendo estar diante de um louco perigoso, entrei no estúdio e disse que o tempo havia se esgotado e descobrimos que se tratava de um motoqueiro que veio buscar alguma encomenda e se chamava Carlos Lessa. Mais tarde, apagamos a gravação. Outro dia me lembrei desta história. A fala do maluco poderia ir hoje ao ar e muita gente acharia normal. Tudo que ele disse acabou virando o discurso político atual. Ou serei eu que fiquei insano e não me dei conta?

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)