Os brasileiros escolherão um novo governante para a nação daqui a um ano, arrastando, muitas vezes, as marcas para cobranças de posição em conversas polarizadas e hostis (Flatart/Freepik)

Há cerca de um mês, o Brasil vivia a apreensão das comemorações do 7 de Setembro. Muitos foram às ruas em apoio a Jair Bolsonaro, mas a euforia não foi longe. No dia seguinte, o presidente do Brasil deixou seus seguidores à míngua ao arrefecer os ímpetos golpistas ensaiados sem sustentação. O fracasso da investida se confirmou após carta que o ex-presidente Michel Temer ajudou a redigir na tentativa de apaziguar os ânimos acirrados com o Supremo Tribunal Federal (STF) e pela insistência de fraudes no sistema eleitoral brasileiro mesmo sem a apresentação de provas cabíveis para tal acusação.

“Todas pessoas de bem sabem que não houve fraude e quem é o farsante nessa história. Quando o fracasso bate à porta, é preciso encontrar culpados”, disse o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao abrir a corte eleitoral dois dias depois.

Daqui a um ano, os brasileiros voltarão às urnas para escolher um novo governo tendo, mais uma vez, um ambiente temeroso como provável companhia. Até lá, o assunto dominará as conversas. Discutida entre família, nos grupos de mensagens, no bar da esquina ou na festinha do amigo da escola, o pleito de 2022 deve fazer também das redes sociais o palanque para discursos polarizados e munidos por discórdias.

Milhões são investidos pelas marcas hoje para descobrir sobre o que as pessoas estão falando e saber como entrar no diálogo pregando espontaneidade. É hora de virar as costas para o assunto que determinará o progresso do Brasil nos próximos anos? É possível entrar nessa conversa sem riscos para a reputação da marca?

VanDyck Silveira, CEO da Trevisan Escola de Negócios (Divulgação)

Erro estratégico
O dilema divide contextos. “Creio, como cidadão, que é impossível não se posicionar em conjunturas como essas que estamos e estaremos vivendo. Porém, não creio que seja o território em que as marcas em geral devam caminhar”, avalia Jaime Troiano, CEO da consultoria TroianoBranding. A professora Luciana Faluba, pesquisadora na área de estratégia e marketing da Fundação Dom Cabral, também entende que, sob a perspectiva dos indivíduos, nunca é hora de se conformar. “Devemos lutar sempre pelo que acreditamos. Mas sob a perspectiva das marcas, essa decisão deve estar amparada por um propósito genuíno. Senão, o risco é muito grande”, adverte a especialista.

VanDyck Silveira, CEO da Trevisan Escola de Negócios, também considera um “erro estratégico que empresas tomem lados de disputas políticas”, diz. A saída é se comunicar por meio dos valores erguidos pelas empresas.
Antes de colocar o posicionamento na rua “vale dar um passo para trás, olhar para dentro da própria empresa e verificar se o discurso está devidamente alinhado com o seu propósito e essência”, ressalta Renata Bokel, CSO da WMcCann. “O que não pode é apenas surfar a onda”, acrescenta.

Ao defender a diversidade e a inclusão, por exemplo, a companhia já demonstra que é contrária ao discurso de ódio. “Não adianta se enrolar na bandeira de um candidato. O tiro pode sair pela culatra”, pontua Silveira. Quando a empresa escolhe um determinado governo, acaba deixando a sua marca exposta a críticas. “Negócio é negócio. A empresa tem de ficar de fora do âmbito político”, crava o executivo.

Papel cívico
Mais do que o mercado, o compromisso das companhias é com a sociedade. “Estou convencido de que mercado é a expressão que apenas representa uma abstração técnica que esconde sua verdadeira realidade e natureza: gente”, acredita Troiano. Renata sublinha o ensinamento. “A primeira preocupação deve ser o compromisso com os consumidores”, ratifica.

Luciana Faluba, pesquisadora da Fundação Dom Cabral (Divulgação)

A Fundação Dom Cabral corrobora com essa certeza. “É mais prudente se posicionar a respeito de questões que impactam a sociedade de uma forma coerente e consistente com o seu posicionamento em vez de se posicionar a respeito de partidos ou políticos”, assegura a professora Luciana Faluba. Da direita e da esquerda, os ventos mudam e podem acabar soprando máximas como “Aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”, repetida por Getúlio Vargas. A fim de evitar o vendaval sem ser complacente, Silveira insiste que as marcas devem cumprir o seu papel cívico por meio de sua missão, visão e valores.

Mas é preciso, verdadeiramente, praticar o que se diz. Anunciar que é inclusiva, mas não ter mulheres, negros ou homossexuais em cargos de gerência ou diretoria contradiz o discurso e dá margem para represálias e crises de imagem. “O compromisso com a sociedade exige que as marcas estejam enraizadas em valores e princípios legítimos, de que ela não apenas fala, mas pratica, cumprindo seu mandato principal: atender clientes e consumidores”, confirma Troiano.

Luciana, da Fundação Dom Cabral, é enfática: “O propósito da marca define os limites”. Empresas precisam manter o foco no objetivo de sua presença. “Ter um lado é posicionamento ideológico, é limitar o alcance do seu produto e ainda gerar uma onda de manifestações”, enumera Marcelo Vitorino, professor de marketing político da ESPM. O limite que deve ser respeitado é o de não julgar o consumidor por suas preferências ideológicas.

Coragem e responsabilidade
Se ainda assim a marca quiser participar da arena política, a exigência muda de patamar, começando por repelir ímpetos oportunistas. “Com toda a transparência que o mundo digital nos franqueou, os arrivistas são descobertos muito antes do que eles possam supor”, adverte Troiano. Pior é quando são desmascarados dentro de casa. “Os próprios colaboradores sabem que as belas frases de sua manifestação pública são apenas uma conversa mole”, emenda.

Jaime Troiano, CEO da consultoria TroianoBranding (Divulgação)

As bandeiras empunhadas pelas marcas devem nortear as decisões “mesmo diante da pressão referendada nas redes sociais para que as marcas se posicionem”, insiste Renata. Antes de se manifestar é preciso dimensionar ganhos e perdas de acordo com o mercado. “Se uma marca tem foco no público da economia criativa, será um problema ter um posicionamento conservador. O mesmo não se aplicaria a uma marca que tem como mercado de consumo a classe médica, pois grande parte é conservadora”, exemplifica Vitorino.
Beco sem saída?

As pessoas cobram uma posição das marcas. Mas quando as empresas escolhem um lado, são atacadas pelo outro. A decisão “deve ser feita de acordo com as personas de fãs da marca”, lembra o professor da ESPM. Ao mesmo tempo, é preciso aceitar que as marcas não são para todo mundo. “A própria blindagem passa por você conhecer quem é o seu cliente para poder tomar decisões coerentes com o seu posicionamento”, esclarece VanDyck Silveira, da Trevisan.

Em um mundo tão conectado, todos têm opinião sobre tudo e unanimidade virou utopia. Não há trégua. O consumidor mudou, e hoje exige um posicionamento. Daí a importância da sinergia entre discurso e atitude. “Espera-se muito mais das marcas e a tendência é que, cada vez mais, a postura isenta não seja mais aceita”, enfatiza Renata, da WMcCann.

Consistência é a palavra usada por Luciana, da Fundação Dom Cabral, para sinalizar os riscos. Narrativas alinhadas a propósitos que atendam aos anseios de stakeholders, colaboradores e a proposta de valor da marca são essenciais. “Mas o melhor é se posicionar a respeito dos tópicos que estão sendo discutidos e seus impactos na sociedade”, avisa a executiva. Já o professor Marcelo Vitorino indica a realização de estudos com formadores de opinião. “Recomendo investir em pesquisas qualitativas com grupos com exposição de argumentos para testar as reações. De acordo com o abrangência da marca, regional ou nacional, um número de grupos deve ser formatado para refletir o mercado”, explica.

Renata Bokel, CSO da WMcCann (Divulgação)

Tiroteio
Pisar na arena política de forma indevida compromete o envolvimento do mercado consumidor com as marcas e seus resultados. “A blindagem é uma ilusão num território onde o fogo cruzado é inevitável”, garante Troiano.
Mesmo de forma organizada e apoiada em crenças políticas legítimas, existe o risco de perder apoiadores e clientes. “Pense no quanto certos torcedores de times de futebol decidiram abandonar o uso de uma determinada marca que patrocinava um clube adversário. Se isso é verdade num ambiente esportivo, imagine no universo político, principalmente no ambiente polarizado e mais tenso ainda no futuro que se avizinha”, compara Troiano.

O tom de uma eventual comunicação deveria ser o menos publicitário possível, com uma linguagem sem conexões comerciais assinadas por marcas. “E que seus porta-vozes sejam profissionais que representem, de fato, os valores da empresa e falem em nome desses valores, e nunca em nome de suas crenças pessoais”, complementa Troiano.
“O diálogo sem imposições em favor de algo, e não contra algo, é uma margem de segurança boa”, aconselha Vitorino. Outra alternativa menos arriscada e profissional seria a marca ajudar a financiar instituições de formação política e campanhas de conscientização.

Preparo
O foco da empresa deve permanecer na sua atividade, contribuindo ainda para a mudança ideológica que sua direção deseja. “Vale contratar consultores para assegurar que essa operação aconteça com risco baixo de perda de mercado”, adiciona Vitorino. Segundo ele, posições podem ser mais facilmente aceitas em empresas menores e menos dependentes. Já em companhias de maior porte, a disposição para se envolver nesse tema tende a diminuir, pois acionistas não costumam ser favoráveis a ruídos na imagem das empresas em que investem.

Firmeza é uma das âncoras elencadas por Renata Bokel no momento em que todos estão à flor da pele. “Além disso, é importante não promover a polarização”, destaca a CSO da WMcCann. Coibir a animosidade política dentro das empresas também é o recado deixado por Silveira. “Temos de criar ambientes plurais e viver os valores também dentro do ambiente de trabalho com respeito e sem cercear o direito do outro”, frisa.

Cena do vídeo Vozes pela Democracia, da Justiça Eleitoral para o Dia Internacional da Democracia, em 15 de setembro (Reprodução)

A recomendação é preservar o compromisso autêntico da empresa. “Não seja uma biruta de aeroporto que muda de acordo com a direção do vento”, alerta Troiano. Outra prerrogativa é agir por meio de padrões éticos insuspeitos e estimular esses comportamentos no universo de seus colaboradores, ajudando a fortalecer o sentido de cidadania.
“A publicidade hoje pode inspirar a cultura, instigar novos olhares e trazer novos pensamentos para a sociedade. Essa é a nossa responsabilidade como indústria”, indica Renata. De acordo com a executiva, o papel das agências é orientar as marcas para que abracem as tensões culturais e as pautas da sociedade de forma pertinente, consistente e conforme o seu propósito.

Sem ataque
Sem uma conexão clara entre o que se faz e o que se fala, o discurso fica inócuo e pode prejudicar a reputação corporativa e o negócio do cliente. “A maior contribuição seria ajudar a ampliar o nível de consciência do público-alvo. É possível fazer isso sem atacar diretamente este ou aquele partido ou político”, sugere Luciana Faluba.
Evitar riscos é difícil quando se adentra em discussões políticas. “No máximo, as marcas podem fazer uma defesa do debate saudável acerca da democracia e da liberdade de expressão”, propõe Marcelo Vitorino, da ESPM.

Mas é preciso ter consciência de que “não existe unanimidade e opiniões ideológicas são divergentes de acordo com região, religião, poder de consumo e situação pessoal”, argumenta o professor. A decisão de entrar ou não na conversa política deve ser tomada após análise, caso a caso. “Seria irresponsável fazer a entrada sem um estudo, baseado em convicções pessoais dos proprietários”, aponta Vitorino.

Qualquer que seja, a conversa demanda respeito. É aí que reside o sentido da democracia, homenageada no vídeo Vozes pela Democracia, da Justiça Eleitoral. Nela está a riqueza da diversidade de opiniões, de saber ouvir e entender o outro sem gestos e palavras armadas.