Empreendedor social fala como marcas e empresas podem contribuir para a transformação social do país e mandar a favela para o museu
O empreendedor social Eduardo Lyra, fundador e CEO da Gerando Falcões, está em constante diálogo com marcas e empresas para transformar a realidade das favelas brasileiras. É um caminho que tem trilhado desde o dia 1 da ONG, hoje um ecossistema de desenvolvimento social presente em 3.700 favelas do Brasil e com mais de 700 líderes na rede.
Entre os parceiros, estão marcas como a Havaianas, Nestlé e O Boticário e alguns dos principais empresários do país, Jorge Paulo Lemann (Ambev), Rubens Menin (Banco Inter e MRV), André Gerdau (Gerdau), Guilherme Benchimol (XP) e Ana Maria Diniz (Instituto Península). Faz parte do seu objetivo 'derrubar muros e construir pontes'.
Segundo ele, as empresas ganharam muita responsabilidade social, até mesmo pelo econômico que alcançaram, e precisam agir, especialmente em momentos difíceis como o atual. "Antigamente, a área de impacto social era um anexo das empresas ou das marcas, e o impacto tem que ser a marca, precisa ser a existência da marca. Essa tem que ser a grande transição de tempo", afirma.
Qual o papel da marcas na transformação social do Brasil?
As empresas nessa economia global ocuparam um poder que, às vezes, é maior do que o próprio poderio econômico de países. Isso traz uma responsabilidade social muito grande e muito relevante nos tempos modernos. A tradução disso significa transformar o ESG em uma tecnologia de transformação do país e não permitir, por nenhuma hipótese, que o ESG seja apenas uma peça publicitária e que não cause uma transformação real, efetiva. Em suma, é fazer com que essas marcas, mais do que venderem produtos, criem valor para o país. Antigamente, a área de impacto social era um anexo das empresas ou das marcas, e o impacto tem que ser a marca, precisa ser a existência da marca. Essa tem que ser a grande transição de tempo, e as empresas que não conseguirem fazer isso vão se tornar obsoletas porque precisam ter um contrato social com o mercado no qual elas operam e entregar isso.
Na pandemia, nós falamos muito sobre um olhar mais atento das marcas e pessoas para ações sociais. Você acha que esse impacto positivo se manteve?
Eu acho que a pandemia funcionou como uma ferramenta pedagógica para ampliar a consciência da sociedade sobre os problemas reais do país. Diante daquele chamamento, a sociedade agiu, sobretudo marcas e empresas, que colocaram um dinheiro pesado para dar uma resposta ao problema da fome, da pandemia e todas as derivativas que ela trouxe. Agora, a reflexão que a sociedade precisa fazer é que o Brasil que a gente quer só vai ser construído se a gente tiver uma agenda de longo prazo, que é o que vai mudar o jogo. É uma atuação resiliente, com metas claras, nítidas, objetivas, com obsessão em chegar nelas e com report do que está alcançando neste período de tempo para o público consumidor. Dizer onde estão, onde estão fracassando e o que estão entregando.
E você percebe esse movimento acontecendo?
Quando nós olhamos para os números, o problema ambiental só aumenta no Brasil, com o desmatamento e os riscos ambientais; e a desigualdade só se amplia, o número de pobres cresceu e o número de favelas dobrou na última década. Então, a gente tem desafios ambiental e social que estão sem uma resposta pragmática e sem uma reversão do ponto de vista do ponteiro mesmo. Precisamos de mais atuação em rede, mais dinheiro, mais recursos e mais influência política.
Nós estamos passando por uma situação econômica e social que se complica cada vez mais. Neste momento, como as marcas podem contribuir?
A primeira coisa é que as marcas precisam ter uma conexão real e genuína com a ponta, com a última milha, onde a vida acontece. Uma conexão que vá para além da pesquisa, tem que ter pé no chão, ir ao território, ouvir e entender. E, segundo, cocriar as soluções com os atores que estão interagindo com esse problema no dia a dia. As empresas precisam estar conectadas ao Brasil real. O case que construímos com a Havaianas, que hoje é dos produtos mais vendidos da marca desde o seu lançamento, é uma prova disso. Um empresa global que foi para a favela para cocriar solução com a favela, não para falar como deveria ou o que seria.
Isso é uma mudança de paradigma muito grande, de empresas, favelas e comunidades falarem de igual para igual. Toda favela é uma comunidade de inventores. Por que a nossa Havaianas é um sucesso de vendas? Porque ela foi inventada para uma comunidade de inventores que está em uma comunidade de favelas. Imagina o sentido de propósito, de valor que existe para quem está comprando um produto desses. Tanto que as pessoas me marcam, fazem vídeos, postam nos stories, porque elas têm a percepção de que estão comprando um produto que está combatendo a pobreza. Que está, para além de gerar lucros, que é importante também, gerando resultado social, reduzindo a desigualdade. Ajudando a construir um case para o mercado de que fazer negócio com a favela é um bom negócio, que não é só caridade, é negócio, é sustentabilidade, é economia emergente.
E, pelo que percebo, você têm estimulado muito essa conexão das marcas com os territórios.
Absolutamente. Tudo que a gente faz na Gerando Falcões é mirando o longo prazo. O que estamos produzindo hoje a gente sempre pensa: eu estou trabalhando nesta favela e a criança que nascer aqui em 2030, 2025, tem que nascer em uma favela melhor. E o eu que vou fazer para que essa favela seja melhor? Então, essa agenda de colaboração com a iniciativa privada, que vai para além de capturar dinheiro, mas também amor, inteligência, conhecimento e trocas, porque a iniciativa tem muita competência para colocar na mesa, é uma coisa que fica de legado, do ponto de vista de uma iniciativa privada que estabelece, junto com o terceiro setor, uma agenda de colaboração. Os próximos empreendedores sociais vão chegar em uma sociedade que estará muito mais aculturada com ceo de empresa e gente milionária e bilionária sentando na mesma mesa que o empreendedor social de uma favela. Isso vai fazer parte da cultura e isso torna o Brasil e o mundo melhores, mais colaborativo, mais participativo, mais produtor de impactos, com menos muros e mais pontes. Eu sei que não vou durar para sempre como ceo da Gerando Falcões, então no arco de tempo que eu tenho eu quero fazer coisas que vão ajudar no presente e, sobretudo, transformar o futuro no longo prazo. Quando em nasci, as favelas já existiam. Quando em morrer, as favelas continuarão existindo, mas diferentes, melhores. Eu não quero deixar uma marca no universo, eu quero uma marca nas favelas, em colaboração com as grandes marcas e com a sociedade brasileira.
Nós temos diversos atores sociais relevantes no país, cada um com estilo e postura próprios. E você é um que carrega muitos elementos criativos e de inovação em sua narrativa, como a Favela 3D, ressignificada para “Digna, Digital e Desenvolvida” e o metaverso social. Como surgem essas ideias?
Eu começo muito cedo e termino muito tarde. Eu trabalho sempre 15 horas, então tenho muito ideia, muitas fracassam, mas, como estou testando muito, uma, duas ou três acabam dando certo e tendo um eco na sociedade. E, para além disso, acredito que nós temos que inovar muito para sair deste labirinto onde a gente está. Eu decidi em algum momento com o meu time que transformaríamos a Gerando Falcões em uma das ONGs mais mais inovadores do planeta na construção de soluções de combate à pobreza. A pobreza extrema é um massacre humano, e o muro é alto demais e vigiado demais para o pobre escapar sozinho. A gente tem que fabricar um caminho alternativo e o Brasil não sabe como vencer a pobreza. A gente tem que entregar uma tecnologia e um caminho alternativos, então a minha obsessão de vida é construir essa tecnologia e entregá-la ao Brasil como uma possibilidade. E isso se faz com muita criatividade. Todo dia eu acordo com uma folha em branco e como é incrível ter uma folha em branco e poder criar e imaginar o amanhã. O Einstein já disse que imaginação vale mais que conhecimento e a gente tem que imaginar novos futuros e ter a coragem de executá-los.
A Gerando Falcões acabou de lançar o "Favela X" no metaverso, que apresenta dados sobre a pobreza no Brasil. Qual a importância de colocar essas informações na mesa e mostrar essa realidade?
Ele é mais que é um jogo, é uma experiência. Quem joga, aprende sobre o Brasil e, especialmente, sobre favelas e desigualdade. Tem quatro fases, educação, cultura, infraestrutura e tecnologia e, a cada fase, o jogador precisa resolver problemas dessa temática. Estamos usando a realidade alternativa para criar uma alternativa de realidade em que as pessoas se sintam protagonistas deste processo e que extrapolem o game e partam para a realidade, é o metaverso social. Há uma tendência de metaverso e nós não podemos ser os últimos. Temos que ser os primeiros. E usar as novas aplicações tecnológicas para comunicar as nossas causas, o tema da desigualdade social e tornar as agendas mais atraentes, mais sexy para engajar o máximo possível de pessoas.
Você criou o Gerando Falcões há cerca de uma década. O que mudou ao longo deste tempo, seja no conhecimento sobre a realidade brasileira seja no engajamento das empresas?
Eu acho que a maior conquista é éramos uma ONG e agora somos um ecossistema de desenvolvimento social, presente em 370 favelas do Brasil, quase 4 mil favelas, e temos mais de 700 líderes na rede. Nós somos um exército. Isso é uma força transformacional muito poderosa, que não tem como desconsiderá-la. A gente está construindo um capital humano nas favelas, de talentos, de indivíduos que transformam e que estão produzindo tecnologia, processos, sistemas, rituais; desdobrando metas, KPIs; e construindo algoritmos, que vai ser algo muito transformador para o país. Eu acho que estamos construindo uma plataforma de mudanças e isso me deixa muito feliz. E a quantidade de dinheiro, de milhões de reais que a gente faz chegar em territórios onde nunca chegariam. Eu capto dinheiro com o Jorge Paulo Lemann, com Rubens Menin, André Gerdau, Guilherme Benchimol e Ana Maria Diniz e fazemos, a partir da nossa rede, esse recurso chegar no Amazonas, no Piauí, no Maranhão, em favelas e territórios extremamente pobres, vulneráveis, desiguais e negliciados pelo estado e que agora tem líderes, time, tecnologia e mudança social chegando naqueles espaços. Tenho muito alegria disso que o nosso time está produzindo para o país e do quão grande isso vai ficar ainda. Nós não ainda atingimos 10% do nosso potencial.
O que falta para os outros 90%?
Estar presente em 100% das favelas do Brasil e entregar a Favela 3D com evidências. Nós contratamos a agência israelense chamada Kayma que está fazendo toda a avaliação de impacto. E ter marcos e conquistas incríveis, como, na Favela 3D, zerar a fila de desemprego, zerar a fila em creche, zerar o analfabetismo. Zerar o desemprego significa que no Brasil, onde o desemprego está em 12% e na favela é chega a quase 70%, significa ter os melhores indicadores na favela. Isso é único. Estamos esticando a corte para acelerar a transformação da indústria social.
Você pode falar um pouco de quais ações tem sido desenvolvidas?
Em Favela 3D, nós estamos prototipando uma solução de tecnologia de mudança sistêmica. Não é uma bala de prata, mas uma mudança sistência em territórios sociais. O programa “decolagem” que constroi, a partir do uso de dados e inteligência artificial, trilhas individualizadas de superação da pobreza para cada família. Nós vamos acompanhando as famílias e em uma ciclo de um a dois anos, elas evoluem de papel e fazendo a sua emancipação social. Temos também aceleração de ONG. Algumas eram menos R$ 0 e, em menos três anos, superaram a casa 1 milhão de reais, hoje mais de 20 pessoas no time, atendem mais de 2 mil pessoas, fazem o advocacy da favela, captam e falam com os governos municipais. Ou seja, construímos um ecossistema que acelera o impacto na ponta através de uma grande rede de ONGs e líderes sociais.
Mandaremos a favela para o museu antes que o Elon Musk chegue a Marte?
Isso é o que iremos fazer, é só questão de tempo. A gente precisa de uma geração que tenha coragem de desafiar o futuro. As gerações anteriores à nossa tiveram sucesso no segmento industrial, econômico, mas fracassaram no setor social. É só olhar a desigualdade, o Brasil é um dos mais desiguais do planeta, mas não é um país pobre, é injusto. A gente tem que ter uma geração que não aceite que a história se repita. Então, mesmo que eu fracasse com o meu time, nós vamos deixar tecnologia, processos e caminhos abertos para a próxima geração chegar lá e uma favela muito diferente daquela que nós recebemos.