Este ano, completei sete décadas. E gostaria de dedicar meu último artigo de 2023 a quem tem menos de 70 anos. De preferência, bem menos. Que esteja naquela fase da vida em que a existência ainda é repleta de curvas, dotada de espaço bastante para altos e baixos, incertezas excitantes e doces esperanças com relação ao futuro.
É o seguinte: pratiquei a vida driblando o definitivo. É uma luta, porque somos educados para edificar e legar alguma coisa mensurável, sob a ótica de padrões conhecidos e consagrados. Fora disso, é uma espécie de loucura. Morrer e renascer de quando em quando não é para qualquer mortal, quem sabe, para nenhum.
Não falta gente equilibrada e bem-intencionada para alertar: não faça isso, a evolução continuada é o eixo seguro da realização que deixa feliz. Passei, no entanto, a vida teimando. Não aquela teimosia saudável, popularizada como resiliência, aquela que nos permite vencer quando já encouraçamos a sensibilidade.
Não existe vitória sem algum tipo de autodestruição. É um negócio que fazemos conosco: damos um pedaço de dentro em troca de um pedaço de fora. E um dia chegamos lá, com algum aleijume: físico, mental ou emocional. Ninguém escapa.
Observem-se os desportistas, os artistas, os publicitários, por exemplo. Ninguém chega lá inteiro. Ou íntegro. As convicções absolutas levadas a um extremo extenuante, por décadas de prontidão e ação, deformam-nos irremediavelmente.
E acabamos enredados numa liberdade impossível de escapar. Atentos, portanto, jovens! Movimentos repetitivos levam a dores lancinantes no futuro. Pensamentos repetitivos levam a cegueiras incuráveis no futuro.
Sem medo de ser infeliz é uma bela resposta à superficialidade do “sem medo de ser feliz”. A pergunta tem de ser: feliz ou infeliz em relação ao quê? A questão incomoda, o que significa dizer que nos torna incômodos.
Mas sempre se poderá escolher entre ser incômodo ou ser incomodado. Como vocês, imensa maioria, se sentem no trabalho? Incômodam ou incomodadas? Preciso dizer? Isso implica no seguinte: a imensa maioria rema, obediente e contrariada, sem saber para onde.
E quando terminar a sua vez, será reconhecida por ter remado, e não por ter chegado, mas estará convencida de que “chegou lá”.
Convenhamos que, ainda que, possivelmente, estável para viver os anos finais da existência, não terá essa maioria, a bem da verdade, chegado a parte alguma.
Mas sua vida pregressa será carimbada pelo legado de uma “contribuição inestimável”. O que, por um lado, não deixa de ser verdade. Afinal, ter aceitado uma vida incomodada como cômoda, significa o sacrifício de algum valor potencialmente mais importante.
Sim, essa consciência parcial se nos terá permanecida latente ao longo dos anos, mas é perfeitamente compreensível (e nos perdoaremos sempre por isso) que ao adotar o pensamento repetitivo teremos evitado um risco tremendo. Principalmente considerando que nossos estímulos são também repetitivos.
Libertar-se de estímulos e objetivos padronizados carrega a glória da irresponsabilidade completa. Com o tempo (suponham 70 anos), nos torna totalmente incapazes de fazer as coisas certas.
Será por isso que eu nunca experimentei um medicamento tarja preta? Ou o contrário? Puxa vida, eu podia dormir sem essa.
Stalimir Vieira é diretor da Base de Marketing
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