VW completou 70 anos no Brasil e lançou um filme publicitário apresentando a nova Kombi dirigida pela cantora Maria Rita, que entoa a música “Como nossos pais”, de Belchior, especificamente o trecho “não quero lhe falar meu grande amor...”. A Kombi surge da direita para esquerda em um explícito recurso de apontar para o passado. Cenas do cotidiano surgem entremeadas pela presença de vários modelos de carros antigos da VW como o Fusca e a Brasília. Segundos após, uma Kombi antiga sai de trás da Kombi dirigida por Maria Rita, emparelhando os veículos quando se vê Elis Regina, falecida há mais de 40 anos, cantando o trecho “você me pergunta pela minha paixão, digo que estou encantada com uma nova invenção...”. O recurso de movimentar a Kombi antiga, dirigida por Elis, de trás para frente emparelhando com a nova Kombi, dirigida por Maria Rita, constrói visualmente a mensagem de passagem, de legado, de suporte para o novo porque “o novo sempre vem...”. E vem de onde? Do passado. A sobreposição dos signos visuais em movimento e dos signos sonoros, sustentados pela historicidade do contexto, constroem a potência dos sentidos de continuidade, um primor de execução.

Na sequência, Maria Rita, filha de Elis, olha para imagem da mãe e sorri em um misto de orgulho, felicidade e carinho e elas seguem dirigindo suas Kombis e cantando, em um momento sublime de afeto. Passado e futuro se encontram na beleza da letra, da música, do ambiente cálido e das cantoras que nunca puderam viver este momento. Os movimentos das Kombis da direita para esquerda e da esquerda para a direita em diferentes planos e filtros, explicitam as dobras do tempo, em uma poesia visual. O filme segue entoado pelas cantoras motoristas, com fragmentos de cenas rotineiras, encontros, celebrações de pessoas comuns, com cenas entremeadas por diferentes modelos de carros VW presentes no Brasil nas últimas décadas, portanto, presentes em nossas vidas e em nossas memórias. Diferentes gerações embaladas por música, artistas, marcas e produtos, signos expressivos do zeitgeist, todos eles, pelo menos desde meados do século 18.

“...É você que ama o passado e que não vê, que o novo sempre vem”, repetido duas vezes pelas cantoras, é alicerçado nas imagens da nova Kombi, que agora é elétrica, momento em que a inovação vem à superfície, seguida pela presença de novos modelos de carros da VW. Para o desfecho do filme, surge a imagem posterior das duas Kombis, dirigidas pelas cantoras, que agora rumam ao horizonte com um novo dia despontando com os inícios dos raios solares que aquecem e finalizam “o novo veio de novo”, resposta da VW que confirma Belchior “o novo sempre vem”.

O filme, criado pela AlmapBBDO para celebrar os 70 anos da VW do Brasil, tinha a missão de retomar o passado, em uma expressão nostálgica e ao mesmo tempo, vislumbrar o futuro. E cumpriu o briefing muito bem. A questão central e polêmica foi a imagem de Elis Regina, cantora falecida em 1982, surgir cantando em um dueto com a filha Maria Rita. O recurso que possibilitou tal “presença”, foi possível pelo manejo de milhares de fotos e vídeos de Elis Regina e uma dublê, em um trabalho só possível pelos recursos da IA hoje disponíveis. Falta de ética, patologia social, vampirismo..., essas foram algumas das atribuições recebidas pelo filme, mas também, encantador, sensacional, emocionante, foram menções recorrentes. Afinal, a publicidade atingiu seu objetivo, sempre explícito, nunca disfarçado, de promover um produto, uma marca, uma ideia. Aliás, nesse aspecto, a publicidade é um discurso totalmente ético, porque não dissimula, busca, com recursos diversos que transitam pela fantasia, pelo nonsense, pelo humor, pelo encantamento, pela arte e tantos outros, construir um contexto significativo para as pessoas, portanto, criar um vínculo que captura a atenção e os afetos. Somos adultos, sabemos disso.

E a presença de pessoas que já não estão mais entre nós não é, em si, inovadora para VW. Em 2013, a mesma AlmapBBDO fez o filme “Novo Fusca. O carro voltou", para celebrar a chegada do novo produto, inspirado no icônico Fusca. Os criativos trouxeram para ambientar o filme a música “País tropical”, de Jorge BenJor e os anos 70, momento em que o veículo reinava nas ruas do país. Com a presença de Cazé Peçanha para conduzir a narrativa que explorava nas ruas da São Paulo antiga, o novo carro surpreendia as pessoas comuns, mas também Mussum, comediante falecido em 1994, que soltava seu conhecido “Cacildis”. Em teaser no fim de 2012, surgia Chacrinha, falecido em 1988, encantado com as inovações que estavam por vir e Rivellino, com uma fala do momento em que o país conquistava o tricampeonato mundial de futebol. Dobras do tempo, passado e presente apontando para o futuro, no caso, as inovações embarcadas e representadas pelo Novo Fusca. Mais uma vez, a imagem dos carros, o novo e o antigo, em paralelismo, surge, mas, diferente do filme de hoje, o Novo Fusca, ultrapassa o velho Fusca, deixando o velho para trás, o que não acontece no paralelismo das Kombis dirigidas por Elis e Maria Rita, reforçando a continuidade.

E por que 10 anos depois a “presença” de Elis Regina em um filme publicitário causou tanta polêmica? Porque a IA permitiu muito mais “realidade” à cena? Porque estamos muito mais moralistas e vigilantes do outro esquecendo de olhar o próprio rabo? Porque a questão revela machismo? Homens podem, mas mulheres não? Seria porque temos medo da IA e não sabemos lidar de outra forma, a não ser atacar? Penso que tudo isto está atuando. Mas, gostaria de me ater a esta última, a imensa dificuldade de lidar com os novos tempos e o que eles trazem, certamente muitas tensões e ameaças, mas também, a potencialidade de soluções nunca antes pensadas. Na área médica e farmacológica, as soluções virão da IA com suas possibilidades potentes de correlações para cada vez mais efetivas, e não necessariamente dos cadinhos, pipetas e beckeres dos cientistas. Em áreas onde a precisão é determinante, a IA tem possibilitado a drástica redução de erros. Fazer mais e melhor, esta é a potencialidade da IA, a questão é para que, com que propósitos e com que efeitos, aqui sim, terreno pleno da ética e da estética.

Clotilde Perez é professora titular de publicidade e semiótica da ECA USP
cloperez@usp.br